Assédio: um problema incontornável?
Juliana Aggio (UFBA)
Silvana Ramos (USP)
Talvez a grande maioria dos professores de filosofia já tenha cometido um ato de assédio sexual sem ter se dado conta de que o cometera. Há, contudo, aqueles que o cometem, sabem que o cometem e continuam no seu lugar confortável de poder sobre a assediada silenciada e de proteção conivente de seus colegas. E se todo texto político é escrito para alguém e contra alguém, apostamos que esse possa despertar alguma fagulha de consciência naqueles que ainda não se deram conta de que certas falas ou gestos corporais são constrangedores ou mesmo agressivos para uma mulher que esteja em situação hierarquicamente inferior na academia: a aluna. Apostamos, também, em despertar nas mulheres que estudam filosofia a consciência de que já possam ter sofrido assédio sexual ou que possam vir a sofrer e em incitá-las a uma possível reação à altura da gravidade do ocorrido.
Há, de um lado, um olhar mais penetrante e mesmo invasivo, um abraço mais apertado do que de costume, um tom mais afetuoso na fala ou uma piada com outras intenções, um comentário sobre a roupa ou sobre os contornos do corpo salientes, uma fala elogiosa como estratégia de sedução, uma mão nos cabelos da aluna até situações mais evidentemente invasivas que pretendem forçar o ato sexual e, de outro, um professor que procura normalizar, naturalizar ou diminuir a vileza de sua própria atitude, como se fosse algo corriqueiro e cotidiano, como se fosse típico de um homem que não consegue se conter diante da beleza feminina, como se fosse uma cantada na forma de piada ou uma brincadeira, como se fosse apenas um elogio.
Ora, que mal haveria num simples elogio sobre a roupa, o corpo, ou a inteligência de uma mulher? Nenhum problema se não tiver um tom de sedução e não der a entender que a aluna o estaria seduzindo com sua vestimenta, seu corpo ou sua bela explanação. Nenhum problema se o professor não colocar a aluna num lugar de possível sedutora, como se sua beleza ou inteligência fosse irresistível, como se ele pudesse justificar para si mesmo o seu ato e assim se desresponsabilizar de todas as consequências nocivas que daí advenham, especialmente para a vida da mulher em questão. Atos de assédio sexual são possíveis causadores de danos psíquicos e de incontáveis prejuízos profissionais, especialmente quando a assediada se vê obrigada a ter de continuar, por fazer parte do mesmo ambiente de trabalho, a conviver com o agressor, tendo muitas vezes de suportar suas constantes investidas, por não estar em condições de denunciá-lo ou detê-lo.
O ato em si já é constrangedor para a mulher numa situação hierarquicamente inferior como aluna e, mais ainda, se ela estiver numa situação de dependência como bolsista. Ou seja, se o ato for de um professor a situação é grave, mas mais grave ainda se for de um orientador que assina pela bolsa da aluna de graduação ou pós-graduação, pois mais poder acumula tal professor, o que lhe faculta maior ascendência sobre a orientanda, e menor possibilidade de reação da mesma, por medo de perder a bolsa e ainda ser difamada no meio acadêmico e supostamente ter arruinada a possibilidade de um dia galgar o cargo de professora.
Não é fácil, nem simples escrever esse texto. Tampouco o é vivenciar ou presenciar o assédio. Calar-se seria uma alternativa sufocante. Talvez falar sobre o assédio não seja a solução para o sofrimento das assediadas, nem cesse completamente o próprio assédio. Talvez alguns homens se sensibilizem com essas palavras e passem a vigiar e a conter mais suas falas e gestos quando tomados por algum desejo sexual diante de uma aluna. Talvez passem a sentir o mesmo desconforto de que falamos ao presenciar uma situação de assédio por parte de um colega. Talvez as alunas passem a ter mais coragem de responder à altura diante do assédio ou encontrem algum refúgio e acolhimento de seu sofrimento em outras alunas e professoras, e até mesmo entre professores sensibilizados com relação a esse tipo de injustiça. O que não podemos é assumir que o assédio seja um problema incontornável.
Ouvir um comentário obsceno sobre o seu corpo é um elogio? Ouvir uma cantada no ambiente de trabalho ou estudo é algo natural? Ser tocada de maneira abusiva é algo aceitável? Deixemos claro aqui que o assédio sexual é uma manifestação sensual ou sexual alheia à vontade da pessoa a quem se dirige. Mas o professor pensa: pode ser que ela goste e assim eu possa avançar na minha tentativa de conquistá-la? E as professoras lhe respondem: não se ela for uma aluna e menos ainda se estiver num ambiente acadêmico. Ou a instituição acadêmica não deveria exercer seu papel democrático de salvaguardar os direitos e preservar um ambiente de convívio civilizado e respeitoso? Assim como apoiamos as iniciativas daquelas que denunciam o assédio nas ruas, nas instituições religiosas, nos aparelhos de cultura, nas instituições de saúde, nas assembleias e no Congresso, exigimos que as universidades tenham por princípio o respeito às mulheres e o repúdio a toda e qualquer forma de violência sexual e de gênero.
Poderia se objetar: mas não é possível que professor e aluna se apaixonem? Sim, conquanto que a aluna esteja em uma situação absolutamente confortável em consentir sem nenhum tipo de constrangimento. Vamos colocar os pingos nos is: paquera e assédio são distintos. Uma paquera acontece com consentimento de ambas as partes: é uma tentativa legítima de criar uma conexão com alguém que você conhece, ou pretende conhecer, e estima. Mas, atenção, a sedução pode ser constrangedora e se configurar como assédio. Paquera não causa medo e nem angústia, o assédio sim. Se uma investida sexual considerada leve e corriqueira pelo professor tem como resposta da aluna um sorriso nervoso e sem graça ou o silêncio, saibam: não houve o consentimento da outra parte e isso é um assédio. Depois desse be-a-bá, seria de se esperar que todo professor fizesse um exame de consciência relembrando suas ações nas relações com as alunas. Ora, na relação hierárquica professor-aluna e, mais ainda, orientador-orientadanda, é preciso redobrar o cuidado, se se quer ser respeitoso e não mais um que oprime e afugenta a mulher dos estudos filosóficos. O ponto aqui não é jurídico, mas político, embora explicitar a lei possa contribuir para a conscientização (https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/41/FOLDER_ASSEDIO_SEXUAL.PDF): o assédio caracteriza-se por constrangimentos ou ameaças com a finalidade de obter favores sexuais feita por alguém de posição superior à vítima, como o professor em relação à aluna (conforme Art. 216-A do Código Penal). A importunação ofensiva ao pudor é o assédio verbal, quando alguém diz coisas desagradáveis e/ou invasivas (as famosas “cantadas”) ou faz ameaças (Conforme Art. 61 da Lei nº 3688/1941). O assédio e a importunação já estão tipificados na lei, embora estejamos muito aquém de contê-los em nosso ambiente acadêmico. A presença desse tipo de comportamento violento e constrangedor traz severas consequências para o tipo de convívio que alimentamos e acaba por contribuir para um dos maiores desafios enfrentados pela área de filosofia: o combate à evasão das mulheres.
A evasão de alunas na filosofia é dramática (http://anpof.org/portal/images/Documentos/ARAUJOCarolina_Artigo_2016.pdf) e muitas causas podem ser supostas como motivadoras, mas parece haver sim um silêncio tácito sobre uma das principais causas: o assédio sexual. Pouco se fala sobre isso, infelizmente. Não estamos aqui falando com tom acusatório, mas pretendendo dar um lugar político ao problema do assédio. Não bastasse o silenciamento das próprias assediadas por medo de retaliação, exclusão, difamação, a narrativa precisa romper esse silêncio tácito, confortável ao ambiente acadêmico majoritariamente masculino. Precisamos dizer não, com todas as letras, ao assédio. Dizer não ao assédio é não aceitar mais que mulheres sejam vistas como objetos sexuais passivos ou como vítimas frágeis do poder dos homens ou como sedutoras irresistíveis. Dizer não ao assédio é afirmar que as mulheres podem e devem ter controle sobre a própria sexualidade. É mostrar que podemos elevar a voz e o poder das mulheres na academia e na sociedade. É não submeter as mulheres aos papéis sociais tradicionais que lhes atribuem os homens machistas protegidos pelo patriarcado ainda vigente. É garantir que elas possam ocupar, sem constante sujeição à violência de gênero, o espaço público de debate, essencial ao funcionamento saudável de uma democracia.
Há diversos fatores que podem justificar a evasão das alunas nos estudos de filosofia, desde a aparente ausência de filósofas na história da filosofia e nos currículos escolares e acadêmicos, filosofias que justificam e naturalizam a desigualdade de gênero, até um corpo docente composto majoritariamente por homens e, o pior de todos: uma prática silenciosa e constante de cantadas dos professores em relação às alunas, algo que remete à suposição, tão presente em nossa cultura, de que mulheres só poderiam garantir seu espaço na universidade, e na própria sociedade, através do corpo e não em função de seu discurso. E, pior ainda, que o corpo das mulheres é um território comum, passível de invasões que não necessitam de consentimento.
Diante da enorme ausência de filósofas na história da filosofia, e da pequena presença delas na área, facilmente vem à mente da aluna a seguinte pergunta: será que existem mulheres filósofas? O que conduz imediatamente a outra pergunta de fundo: será que a mulher é capaz de filosofar? Acreditar que nós, mulheres, seríamos capazes de fazer filosofia é muito mais difícil diante de uma história da filosofia que omite filósofas. É muito mais difícil em um ambiente acadêmico que nos diminui, oprime e, sobretudo, assedia. É muito mais difícil em uma sociedade machista, patriarcal que desqualifica a mulher e desvaloriza a filosofia. Pois bem, a nossa coletividade feminista acadêmica é um movimento de resistência que visa superar essas dificuldades. Juntas e solidárias, lado a lado, contra a violência sexista e racista presente no interior das instituições ou das relações institucionalizadas professor-aluna, gostaríamos de trazer o assunto à tona e de convidar a comunidade acadêmica a assumir o compromisso de combater o assédio.
Desde 2016, a chamada primavera das filósofas tem, por acreditar na necessidade de uma filosofia libertária, buscado pautar o debate público sobre como o assédio moral e sexual atua na evasão das mulheres do campo da pesquisa filosófica. Em 2018, formulamos o documento “Diretrizes para prevenir e combater o assédio moral e sexual nos programas de Pós-Graduação em Filosofia das universidades brasileiras”(http://www.anpof.org/portal/images/Manifesta%C3%A7%C3%A3o_de_Apoio_e_Diretrizes_vers%C3%A3o_final_2.pdf) com o intuito de tê-lo aprovado nos programas de pós-graduação no país e, mais, de ter a adoção de uma política séria de combate ao assédio como critério de avaliação destes.
O nosso repúdio ao assédio sexual se dá pela identificação de que este é um dos fatores de impedimento para as mulheres seguirem na carreira de pesquisadoras em Filosofia. Trata-se, portanto, de reverter a naturalização da evasão e de afirmar nosso direito de pertencimento a este espaço de pesquisa. Trata-se, portanto, do combate ao assédio como estratégia de afirmação de um direito. Não somos território a ser conquistado ou colonizado, somos sujeitas. Não somos vítimas, somos agentes dos nossos direitos. Não ficamos ruborizadas com supostas cantadas; ficamos, sim, indignadas com a suposição de que estamos à disposição de conquistadores que nos colocam no lugar de sedutoras para não se verem como assediadores.
O assédio sexual precisa, por isso, ser entendido por toda a comunidade acadêmica filosófica como um problema político, no sentido mais amplo deste termo. A reivindicação é a de que homens sejam desautorizados a menosprezar as mulheres como alunas ou como pesquisadoras, a subalternizá-las como secundárias, a emudecê-las nos debates, a ignorá-las em reuniões, a impedi-las de ter acesso a cargos de coordenação e direção.
Nossa narrativa não se encerrará aqui, tampouco aceitaremos que o assédio seja um problema incontornável e faremos o que estiver ao nosso alcance para romper silêncios e diminuir sofrimentos e opressões das mulheres, sobretudo, das alunas de filosofia. O assédio sexual não mais servirá para nos retirar violentamente do espaço público tão arduamente conquistado ao longo de décadas e décadas de luta por direitos. Mas nossa iniciativa não surtirá verdadeiro efeito transformador se não contarmos com a escuta de nossa área como um todo, se nossas instituições universitárias e de fomento à pesquisa, especialmente pelas ações daqueles e daquelas que nelas trabalham e tomam decisões, não assumirem o mesmo repúdio ao comportamento nocivo que ora denunciamos. Só assim abriremos caminho à construção de relações de gênero mais justas em nosso meio acadêmico.
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