Precisamos falar sobre assédio. Moral e sexual. Pelas razões expostas pela Yara Frateschi, o assédio é um fator de expulsão das mulheres da Filosofia: começa na graduação e vai adiante, mestrado, doutorado, pós-doutorado, professora de ensino médio, de graduação, de pós-graduação. O assédio é uma constante mesmo que a mulher em questão faça parte do privilegiado grupo de professoras que são pesquisadoras em Filosofia no país - a princípio, o topo da carreira acadêmica. E será ainda mais perverso se essa mulher ocupar algum cargo de comando, como chefe, coordenadora, diretora, reitora ou decana.
Seria ingenuidade supor que a misoginia estrutural na sociedade brasileira não se manifestaria nas universidades. Está lá, presente todos os dias. Gostaria de especular sobre uma das causas que venha a dar contornos mais nítidos ao fenômeno da discriminação contra as mulheres na Filosofia. Primeiro, seria preciso reconhecer que, dentro do grande grupo das Ciências Humanas, onde estão pesquisadores/as em Filosofia, filósofos sustentam, implicita ou explicitamente, a posição de que a Filosofia é um saber mais elevado, mais digno, mais importante e mais difícil do que os outros. Essa é uma queixa recorrente que ouço quando trabalho com colegas de outras áreas de Humanas.
É mais ou menos óbvio que o professor que defende essa suposta superioridade confere a si mesmo antes de mais nada um aspecto ridículo, qual seja, o de precisar se dizer numa posição de importância que ele mesmo se atribuiu. Tomemos essa estrutura para aplicá-la na relação entre homens e mulheres : ora, a nós, mulheres, também é mais ou menos óbvio que são os homens e toda a estrutural social, cultural e institucional que cultivam a sua suposta superioridade em relação às mulheres. Nós sabemos que isso é uma farsa. Não só sabemos, como também denunciamos, lutamos e reivindicamos igualdade e liberdade (há séculos, é bom observar). Como hipótese, o problema do assédio contra as mulheres na Filosofia seria apenas a reprodução interna dessa farsa, reaplicada por filósofos em relação a filósofas.
O problema, como bem descreve Frateschi, são as consequências. Alunas que dizem “a filosofia é um lugar muito opressor” - no que elas têm razão - ; alunas que desistem; alunas que não escrevem ou, quando escrevem, não publicam,; alunas que não se inscrevem em concursos ou, quando se inscrevem, não fazem ou, quando fazem, não são aprovadas. Mas é porque essas alunas existem que nós estamos também nos movimentando. Há cerca de três anos, participei, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, de uma comissão para redigir um documento de diretrizes de prevenção contra assédio moral e sexual. Era resultado de uma luta de coletivos de alunas que não suportavam mais o assédio recorrente de professores. Na reunião em que o documento foi levado à aprovação, essas alunas estavam presentes e puderam testemunhar como nós, as professoras que estavam apresentando o documento, também éramos alvo de assédio moral por parte de professores que achavam a iniciativa "desnecessária".
Aqui a escolha da palavra “alvo” é fundamental ao meu próximo argumento: a reivindicação de fim do assédio moral e sexual tem levado muitas de nós a buscar os caminhos de perseguição e punição dos agressores, estabelecendo uma relação algoz/vítima que não considero nem produtiva nem efetiva para enfrentar o problema (aqui seria preciso abrir uma longa discussão sobre as relações entre lutas feministas e punitivismo, mas não é nem o lugar nem o momento).
O recurso à punição me parece que deve ser o último, se e somente se antes dele nada mais tiver sido possível. Isso porque estamos diante de necessidade de transformação cultural ou, mais ainda, da necessidade de um novo pacto social que seja escrito a partir da perspectiva da igualdade e da liberdade para mulheres, e não apenas. Para pessoas negras, para pessoas trans, para pessoas que não sejam mais julgadas por suas escolhas de objeto sexual, para pessoas que não sejam discriminadas pelos seus corpos. Então, se por um lado a redação das diretrizes foi uma experiência fundamental para começar a repactuação da qual falava uma das professoras da comissão, a antropóloga Daniela Manica; por outro lado é preciso que haja firmeza na decisão das mulheres de não adotarem como estratégia apenas a vitimização. Isso porque, para falar com Foucault e Butler, como vítimas, entregamos nosso bem mais precioso, a nossa capacidade de agenciamento.
O problema da permanência das mulheres na Filosofia é ainda mais grave no âmbito da pós-graduação, onde estão disputas por toda sorte de recursos: financeiros, humanos, políticos. Diante isso, um grupo de trabalho dentro do GT de Filosofia e Gênero sugeriu para a Capes um documento de diretrizes contra o assédio moral e sexual que possa ser adotado nos programas e venha a fazer parte da avaliação de desempenho. É mais uma forma de apontar para repactuação, propondo mudanças que admitem a existência do problema e que indiquem possibilidades de solução fora do par vítima/algoz.
Por fim, e talvez o mais importante, está a escuta apontada no texto de Frateschi. Somos nós, mulheres filósofas, que podemos ouvir as que estão manifestando o desejo de seguir por esses caminhos. Escutar, apoiar e acolher são gestos de hospitalidade a um sofrimento que também é nosso e que começa por admitir que eu, como professora, ainda preciso, todos os dias, reivindicar meu reconhecimento na Filosofia.
Oi Carla
Obrigada por responder tão prontamente!
Sigo o papo: nós não estamos discordando no fundamental:
1. Somos, enquanto professoras mulheres aquelas a quem nossas alunas mulheres (ou que se identifiquem como mulheres) podem recorrer para reclamar, relatar, confiar;
2. somos, enquanto professoras mulheres, pelas mesmas razões (embora não somente) que nos habilitam a ser 1, aquelas que muitas vezes sofrem com os comportamentos misóginos, machistas ou “simplesmente sem noção (educação)” de colegas.
Eu gostaria de assuntar um pouco mais é sobre as nuances em torno das alianças de que você fala. Sim, elas são fundamentais. Seja como for que se engendrem, entretanto, o nosso privilégio marginal não pode ser jamais perdido de vista.
(Estou usando essa ideia que a Naomi Scheman usa em vários textos desse livro, e que serve para destacar o caráter relacional do privilégio: como mulheres, somos tão desprivilegiadas quanto nossas alunas, mas como professoras, temos mais privilégio. E o que ocorre, ou pode ocorrer, nas alianças, é que o privilégio que temos (resumido em 1) pode ser confundido com não-privilégio (de 2), de modo que nossa posição como professoras mulheres pode acabar nos sobrecarregando psicológica e institucionalmente, sobretudo quando somos poucas (quando não únicas) em instituições em que tanto ainda precisa mudar.
Talvez eu esteja desencaminhando um pouco a conversa, que era para ser sobre assédio, ao perguntar sobre como as alianças entre professoras e alunas podem ser positivas no enfrentamento ao assédio. Mas me parece importante refletirmos sobre isso. Creio que para poder dialogar com os colegas e com as alunas, de tal maneira que um diálogo se estabeleça - e não uma luta, não gosto dessa semântica bélica - devemos começar a refleti em termos do que na resposta ao post da Yara chamei de cultura do assédio. Se focarmos apenas no assédio (que é obviamente um dos maiores problemas, só não maior do que a agressão), outros comportamentos que fazem parte da mesma cultura podem acabar ficando por isso mesmo.
De outra parte, para problematizar esses outros comportamentos (piadas, insinuações e exemplos misóginos, silenciamento das alunas mulheres em aula etc..) como parte de uma cultura profundamente machista e misógina, necessitamos de discussões híbridas, entre normativas claras (assédio é, de acordo com a lei, isso-isso-e-aquilo) e descrições de práticas que se para nós são absurdamente inapropriadas, para quem as repete desde sempre não são. E se queremos convencer nossos colegas a mudar de atitude - estamos falando de modificação de uma cultura! - precisamos que eles primeiro reconheçam o que há de errado com essas práticas. E isso, por sua vez, exige de nós, mediadoras dos conflitos entre (alguns) de nossos colegas e (boa parte) de nossas estudantes, tempos e energias de que nem sempre dispomos.
Mas é preciso continuar, mesmo quando não se pode continuar, não é? Ainda mais agora, quando tudo parece ruir. Vamos, sim, unir. E que possamos seguir encontrando clareza sobre aquilo que podemos (e devemos) deixar pra trás nesse caminho que além de longo é cheio de complexidades.
Um abraço,
G.
P.S.: Editei a resposta que havia escrito há cerca de 6h atrás, pois estava focando demais em casos particulares, muito vinculado a experiências recentes e frustrantes em minha própria instituição.
Querida Gisele, que bom ler suas respostas e provocações. Concordo em dois pontos fundamentais da sua argumentação: 1) somos também muitas vezes alvo; 2) não estamos aptas a certos tipos de escuta, como a escuta psicanalítica ou mesmo uma escuta que seja capaz de fornecer orientação jurídica. No entanto, gostaria de insistir que, como professoras mulheres, somos muitas vezes a primeira porta que uma aluna vislumbra e é nesse sentido que digo que podemos acolher. Também proponho acolhimento como forma de pensarmos, nós, as professoras, em conjunto com as alunas, como nós também somos desqualificadas pelo sistema acadêmico e universitário, o que talvez nos ajude a criar alianças.
Sem dúvida que os projetos de justiça restaurativa têm sido uma importante alternativa ao punitivismo, mas é um caminho a ser construído, tanto na iinstituição, quanto no corpo docente e discente. Tenho a impressão de que essa tarefa é também nossa, como professoras mulheres. Acho que o caminho é longo e, por isso mesmo, precisamos nos unir para percorrê-lo.
Um beijo
Carla
Estimada Carla
Acabei de escrever uma reposta à postagem da Yara, e agora vou responder à sua (antes tarde do que mais tarde!), repetindo algumas coisas - o formato do nosso Fórum assim impõe.
É que estou com isso martelando na cabeça: sim, vamos escutar, conversar, abrir os braços e ouvidos para as nossas alunas. Não queremos mais que elas desistam da filosofia por causa se assédios e as diversas variações desta cultura misógina nefasta, que se manifesta em piadas, olhares, escolhas de repertório de autores dos cursos e outros elementos das pedagogias exercidas nos departamentos do Brasil adentro.
Ocorre que, como você mesma relatou, e eu escrevi na resposta para a Yara, a gente também está em posição de fragilidade, relativamente menor que as nossas alunas. E também estamos sujeitas a errar a mão as vezes, acreditando piamente por exemplo em tudo o que as alunas nos dizem, ardendo os olhos e estômagos para fazer justiça e agindo de um modo não tão prudente. Falo por mim, não por mais ninguém. Fazer o papel de mediadora é algo mais complicado do que aprendemos em nossas formações, e que nos permitem alguns de nossos temperamentos...
E aí é que fico pensando que o seguimento da conversa - que pode e deve ser bem variado, levando em conta os aspectos psicossociais dos mecanismos em jogo no assédio - deveria considerar um ponto chave do seu texto, quando você diz que "O recurso à punição me parece que deve ser o último, se e somente se antes dele nada mais tiver sido possível. Isso porque estamos diante de necessidade de transformação cultural ou, mais ainda, da necessidade de um novo pacto social que seja escrito a partir da perspectiva da igualdade e da liberdade para mulheres, e não apenas."
Vem, então a repetição de parte da resposta que fiz ao post da Yara, pra contar que no Instituto Federal Farroupilha em que a colega Marcela Vilar Sampaio trabalha, ela ajudou a implantar um projeto de lida com o assédio baseado da ideia de justiça retributiva – no qual professores e técnicos administrativos são treinados por uma psicóloga em técnicas de mediação de conflito. As denúncias são, portanto, sempre primeiro encaminhadas para um mediador que fez a formação, que conversa com ambas as partes e depois, se for da vontade das partes, há um momento de conversa entre todos para tentar resolver a questão sem punição, mas com reconciliação.
(O nome desse projeto de extensão é “Círculos de Construção de Paz - Vivendo em voz alta” e, está descrito na Plataforma Lattes da Marcela assim: Com o intuito de buscar uma cultura de Paz dentro e no entorno do Instituto Federal Farroupilha foi elaborada uma Política de Não Violência do Instituto Federal Farroupilha (Resolução CONSUP 71/2018) que tem por finalidade estabelecer conceitos, princípios, diretrizes e ações institucionais de prevenção, sensibilização e responsabilização educativa, no que se refere a todos os tipos de violência, conforme normas e instrumentos internacionais de direitos humanos e legislação nacional, tal como o Programa Educadores da Paz da UNESCO: respeito a vida, rejeitar a violência, ser generoso, ouvir para compreender, preservar o planeta e redescobrir a solidariedade.)
Creio que por aí temos um modelo alternativo sobre o qual vale conversar, não?
Um abraço,
G.