Na transformação do silêncio em linguagem e em ação, é essencial que cada uma de nós estabeleça ou analise seu papel nessa transformação e reconheça que seu papel é vital nesse processo (Audre Lorde)
No dia 27 de novembro de 2019 foi lançada a Rede Brasileira de Mulheres Filósofas. Comemoro a criação da Rede e espero poder contribuir da melhor maneira possível. Em um país de dimensões continentais como Brasil, a Rede é capaz de diminuir distâncias, de nos fazer conhecer umas às outras e nos colocar em comunicação. Estou muito feliz por ver, todos os dias, que há muitos eventos e iniciativas acontecendo no país inteiro relacionados ao nosso tema: mulheres na filosofia. Repetindo Juliana Aggio: um brinde às mulheres filósofas!
Estamos aqui para compartilhar as coisas boas e também as difíceis, hoje eu vou com as difíceis e dolorosas.
Sabemos, pelos artigos publicados por Carolina Araujo, que não há apenas uma enorme desigualdade de gênero na área de filosofia, mas também que as mulheres são continuamente “expulsas” ao longo da carreira e têm muito menos chances do que os homens de chegarem ao topo. A pergunta que estamos nos fazendo é: por que? Quais são as causas materiais e simbólicas que contribuem para essa evasão? Por que a carreira parece impor mais dificuldades às mulheres do que aos homens?
Eu gostaria de contribuir com uma reflexão a esse respeito, que não faço sozinha, mas a partir das rodas de conversa das quais eu e outras colegas temos participado em diversas universidades, das entrevistas que tenho feito com estudantes de graduação e pós-graduação para a pesquisa “Mulheres na Filosofia” e dos depoimentos compartilhados em eventos que tematizam o problema.
Neste post eu escolhi destacar um tema, extremamente grave, relacionado às perguntas que fiz acima: assédio e violência sexual. As rodas de conversa ou entrevistas costumam operar com alguma tranquilidade, até que o tema aparece e sempre aparece. Neste momento, a temperatura do ambiente sobe, raiva, desespero, humilhação, impotência. Definitivamente, as nossas instituições não estão preparadas para lidar com o assunto e as alunas não confiam que a universidade vá apoiá-las e dar prosseguimento às denúncias, principalmente quando o assediador é um professor. A assimetria de poder faz com que a aluna tenha, com razão, muito medo de levar adiante uma denúncia; ela sabe, também com razão, que há grandes chances de outros professores armarem um colchão de proteção para o assediador; ela sabe, com razão, que ficará marcada pela denúncia e que pode ser prejudicadas em processos seletivos e até mesmo bancas de contratação. Se esses medos não fossem razoáveis, por que permaneceriam caladas? São dois os destinos mais comuns: as alunas abandonam o curso ou ficam sofrendo caladas.
Mas quem pode aprender e ser feliz sofrendo calada os efeitos do assédio ou da violência?
Precisamos considerar que a evasão de algumas mulheres pode estar relacionada a essas dores. Precisamos levar a sério que o custo afetivo de permanecer seja alto demais.
O que nós, docentes, podemos fazer? Esta é a pergunta que eu abro para a nossa conversa e deixo aqui algumas reflexões e sugestões, esperando poder ouvir as colegas da Rede.
Penso que precisamos, antes de tudo, contribuir para quebrar o silêncio e criar espaços favoráveis para que as nossas alunas falem sobre o que as aflige e sobre as violências que sofrem: coletivos, rodas de conversa, portas abertas, ouvidos atentos. Nós temos autoridade e condições mais objetivas para cumprir a nossa responsabilidade de enfrentar o machismo toda vez que ele se apresenta, acolhendo as nossas alunas, educando os nossos alunos, levando o tema para sala de aula, para as reuniões de docentes, congregações, institutos e reitoria.
Na Unicamp nós demos um passo importante referente ao tema do assédio e da violência sexual. No ano passado, a reitoria determinou que um Grupo de Trabalho estudasse o tema e o documento resultante propôs a criação de uma secretaria especial para recebimento e encaminhamento de denúncias. O Conselho Universitário acatou a proposta e aprovou a abertura da Secretaria Especial de Atenção às Vitimas de Violência Sexual, com equipe especializada. Com isso a instituição dá um passo muito importante, pois está assumindo que há um problema sério e dizendo para a sociedade que não é conivente.
No entanto, como todas as medidas jurídicas e punitivas, esta também é insuficiente e precária se não vier acompanhada de educação e práticas feministas. Precisamos liderar campanhas contra o assédio desde o ingresso dos nossos estudantes. Alunos, alunas e alunes precisam saber, desde o primeiro dia em que pisam na Universidade, que a instituição está em luta pedagógica contra o machismo e todo tipo de preconceito vinculado ao gênero e à sexualidade. Em 2019 as alunas da filosofia receberam os ingressantes com uma cartilha contra assédio e violência sexual feita por elas mesmas (isso sim é pedagógico!), eu vou gostar de compartilhar com vocês. E também gostaria de pedir que compartilhassem iniciativas nesse sentido, assim como materiais.
Mas não podemos nos iludir. No caso do assédio cometido por professor, mesmo que haja canais e mecanismos institucionais aperfeiçoados de acolhimento e denuncia, a aluna vai continuar a ter receio pela sua carreira. Outro dia uma me disse: “se eu denunciar, ele vai me buscar no inferno”. Se nós não queremos pedir às mulheres mais um sacrifício, muito menos individual, precisamos pensar juntas o que fazer. Acolher, em primeiro lugar. Em segundo lugar, conversar. A Rede pode nos ajudar nisso. Vamos conversar umas com as outras sobre como enfrentar cada caso que se apresenta. Somos poucas em alguns departamentos, mas somos muitas espalhadas pelo Brasil. A nossa articulação em rede nos ampara e protege as nossas alunas.
Vamos nos juntar, quebrar o silêncio e estreitar laços.
Por fim, mas não menos importante. Precisamos buscar a cooperação dos nossos colegas que podem efetivamente ser parceiros na criação de um ambiente acadêmico mais respeitoso com as mulheres. Vamos chamá-los à responsabilidade. Como lembra bell hooks, o feminismo é para todo mundo e será uma batalha perdida se for apenas das mulheres.
Vamos nos ajudar a transformar o silêncio em linguagem e em ação (Audre Lorde).
PS: a imagem que ilustra este post é uma homenagem ao grupo de mulheres LasTesis que criou a performance que se alastra pelo mundo inteiro contra o assédio e a violência sexual.
#redebrasiliraemulheresfilosofas
Estimada Yara
Obrigada por iniciar esta conversa por aqui. Minha resposta demorou um pouco, mas vamos lá!
Você pergunta: O que nós, docentes, podemos fazer? E responde primeiro com a ideia de criar espaços de escuta, porque temos mais condições objetivas para o enfrentamento do machismo. Depois, segue com uma breve lista de ações tais como acolher as alunas; educar os alunos; levar o tema para a sala de aula, para as reuniões departamentais e de demais instâncias institucionais.
Primeiro, quero deixar claro que não discordo de nenhuma proposta, nem da chamada geral para que troquemos ideias e relatos sobre os casos particulares, pois apenas juntas podemos enfrentar a hidra da misoginia, para usar a expressão certeira que Katarina Peixoto cunhou para metaforizar a dimensão e a complexidade do problema que enfrentamos enquanto mulheres.
Quero, entretanto, problematizar um pouco algumas ideias subjacentes, pois precisamos de clareza sobre o que nos cabe enquanto docentes mulheres. É que, por experiência própria, sabemos o quão psicologicamente pesado são os tais momentos te escuta. E não há como não ser assim, afinal os desrespeitos, as agressões, e as violências sofridas e relatadas são de doer, às vezes nos enraivecem, às vezes nos enojam, e por aí vai. É nessa complexa atmosfera sócio-político-psicológica que buscamos reagir de modo mais concreto em nossas instituições, conversando com nossos colegas, formalizando reclames em cartas lidas em reuniões departamentais e coisas do tipo. E isso, bem, nem sempre tem o destino que nossas estudantes esperam que tenha.
Elas, nossas estudantes têm motivos para desejar mudanças drásticas e soluções rápidas para problemas atávicos, que nem sempre podem ser resolvidos à toque de caixa. Nós, docentes dispostas a mediar as comunicação entre as partes (estudantes cansadas do machismo estrutural e colegas que agem de acordo com essa cultura), queremos que as coisas mudem, mas sabemos que não mudarão na velocidade e com a eficiência esperada, por diversas causas e razões, que no seguimento da conversa podemos discutir.
O que eu gostaria de saber mais, de outras colegas, é sobre como elas se sentem nessa posição em que nos encontramos, quase que entre a cruz e a espada, como se diz.
De de um lado, estamos na escuta dos reclames de nossos estudantes (lembrar: não são apenas estudantes mulheres ou identificadas como mulheres que sofrem assédio!). Para que os casos de assédio sejam encaminhados de maneira adequada, muitas vezes só a porta das denúncias formais se apresenta – mas temos aí o problema do medo (muitas vezes justificado) que as alunas sentem de levar os processos administrativos adiante. Elas sabem que é bastante comum a corda arrebentar pro lado da assediada, não do assediador.
De outra parte, nem todas as instituições de ensino contam com ouvidoras mulheres, por exemplo, o que é mais um empecilho para denúncias formais; os assediadores, por sua vez, sabem que no mais das vezes as denúncias serão abafadas, e por diversas razões, que variam de instituição para instituição mas que por certo possuem trações comuns. E aí entra novamente o papel das gestões de nossas instituições, para fornecer profissionais que nos orientem e dialoguem sobre como a lidar com a coisa toda, em suas dimensões psicológicas, sociais e políticas.
Acho que meu problema na realidade seria: Quem nos escuta a nós, as que escutam as alunas? E como?
Quando estava elaborando esta resposta, li no Portal Geledés que a Unesp lançou um guia contra o assédio no ambiente acadêmico. E fiquei aqui pensando num tema mais amplo, mas relacionado, que é o punitivismo como meio de atacar problemas da ordem que estamos lidando.
Para finalizar, gostaria de contar que em 2018 realizamos no Departamento de Filosofia da UFSM uma mesa sobre a cultura do assédio e problemas relacionados com colegas de dois Institutos Federais do Rio Grande do Sul, as Professoras Liliana de Oliveira e a Marcela Vilar Sampaio. Me ocorreu convidá-las para escrever aqui neste Fórum, pois ambas tocam projetos ótimos em seus contextos.
Para não me alongar demais, relato rapidamente que no IF Farroupilha em que Marcela trabalha ela ajudou a implantar um projeto de lida com o assédio baseado da ideia de justiça retributiva – no qual professores são treinados por uma psicóloga em técnicas de mediação de conflito. As denúncias são, portanto, sempre primeiro encaminhadas para um mediador, que conversa com ambas as partes e depois, se for da vontade da pessoa assediada, há um momento de conversa entre todos para tentar resolver a questão sem punição, mas com reconciliação.
O nome desse projeto de extensão é “Círculos de Construção de Paz - Vivendo em voz alta” e, está descrito na Plataforma Lattes da Marcela assim: Com o intuito de buscar uma cultura de Paz dentro e no entorno do Instituto Federal Farroupilha foi elaborada uma Política de Não Violência do Instituto Federal Farroupilha (Resolução CONSUP 71/2018) que tem por finalidade estabelecer conceitos, princípios, diretrizes e ações institucionais de prevenção, sensibilização e responsabilização educativa, no que se refere a todos os tipos de violência, conforme normas e instrumentos internacionais de direitos humanos e legislação nacional, tal como o Programa Educadores da Paz da UNESCO: respeito a vida, rejeitar a violência, ser generoso, ouvir para compreender, preservar o planeta e redescobrir a solidariedade.
Seria interessante seguir a conversa levando em conta tanto iniciativas robustas como as da Unicamp (que você descreveu), da Unesp (na UFSM as coisa ainda é um tanto tímida, como se vê aqui), do IFICS (UFRJ) que a Carla Rodrigues relatou no post posterior ao seu, mas também o formato de resolução dos problemas da cultura do assédio ao estilo do proposto no IF Farroupilha.
Talvez uma tarefa a ser realizada coletivamente seria justamente a de listar e detalhar as iniciativas em cada uma das instituições das quais as filósofas da Rede fazemos parte, para seguirmos pensando nos subproblemas desta grande problemática que é o assédio.