Parceiras da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, compartilho com vocês a minha crítica aos textos de Giorgio Agamben dedicados ao tema do coronavírus, publicados entre fevereiro e abril de 2020.
A tese com a qual Agamben inaugura as suas reflexões é a de que a epidemia é “uma invenção”. Baseado nos relatórios do Consiglio Nazionale dele Richerche – segundo os quais apenas 4% dos pacientes teriam necessidade de hospitalização, enquanto a maioria da população teria sintomas leve como os da gripe – o filósofo vem a público defender que as medidas de emergência adotadas pelas autoridades italianas para o combate a uma “suposta” epidemia são “frenéticas, irracionais e totalmente imotivadas”.
Não foram poucas as críticas que Agamben recebeu nos dias que se seguiram à publicação de “A invenção de uma epidemia”, e não apenas na Itália. Acadêmicos, jornalistas, profissionais de áreas diversas em jornais, revistas e nas redes sociais argumentaram contra a tese da “invenção” e acusaram a irresponsabilidade do filósofo no tratamento do tema do distanciamento social (“lunático” obscurantista” “delirante”, é o que lemos por aí).
Quem esperava (como eu) que ele revisse a sua posição em função do aumento veloz dos casos de contágio e morte, bem como diante do colapso do sistema de saúde italiano, frustrou-se. Nos artigos seguintes, ele não apenas não revê a tese da “invenção” como passa a criticar duramente a sociedade italiana pela docilidade com a qual aceita as restrições de liberdades impostas pelo distanciamento social.
Em "Agamben sendo Agamben: o filósofo e a invenção da pandemia" eu procuro argumentar que embora as reflexões do filósofo italiano estejam causando espanto – até pelas semelhanças entre aspectos do seu discurso com o de Jair Bolsonaro –, devemos reconhecer que a sua posição sobre a crise do coronavírus é perfeitamente coerente com a sua obra, especialmente com o esquema desenhado por ele para explicar a afinidade entre o biopoder e o estado de exceção. Agamben está sendo Agamben. O esquema já estava pronto, ele apenas o aplicou ao caso.
O resultado: uma análise que chega às raias do rompimento com a verdade factual, desconectada das demais ciências, arrogante com a sociedade italiana e que não tem sensibilidade para os impactos da pandemia nas camadas sociais mais vulneráveis da população.
Sabemos que o narcisismo não é algo raro entre filósofos, tantas vezes menos preocupados em compreender o mundo do que em corroborar a própria filosofia.
A filosofia não precisa ser assim.
O filósofo não precisa retirar-se da cidade para o Olimpo, para o céu das ideias ou para uma cabana na floresta. Tampouco precisa negar a sua humanidade (e a dos outros) para ser crítico.
Para quem tiver interesse, segue o texto completo publicado no Blog da Boitempo.
PS: A Boitempo reuniu os textos de Agamben em Reflexões sobre a peste: ensaios em tempos de pandemia, com tradução de Isabella Marcatti e prefácio de Carla Rodrigues. O meu texto foi escrito antes de eu ter acesso ao prefácio da minha colega e parceira Carla Rodrigues. De qualquer modo, não se faz filosofia sem dissenso pela simples razão de que o pensamento morre na ausência das diferenças.