Sandra Suely Lurine Guimarães
Professora da Faculdade Faci Wyden. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito. sandralurine@yahoo.com.br.
Loiane Prado Verbicaro
Professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito. loianeverbicaro@uol.com.br.
Sandra é professora doutora e pesquisadora do Grupo de Pesquisa “Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito”, com formação em filosofia e em direito. Para além de parceira acadêmica e das afinidades das nossas pautas de pesquisa, ela é também uma parceira de vida, daquelas que representam tão bem a dimensão de irmandade. Ela pesquisa o feminismo negro a partir de políticas públicas adequadas às demandas igualitárias das mulheres negras e me presenteou com a possibilidade de escrevermos juntas esse pequeno texto com reflexões e preocupações que nos são tão caras.
Em tempos de Pandemia, causada pela COVID-19, tem sido quase um truísmo a afirmação de que o vírus causador da doença “é democrático porque atinge a todos de forma indistinta”. Essa afirmação é apenas parcialmente verdadeira, tendo em vista que se por um lado pessoas de todas as classes, raças e gêneros têm sido infectadas, os efeitos que essa pandemia causa na vida desses sujeitos, não ocorre de forma homogênea, em razão das assimetrias que são estruturantes na nossa sociedade. A verdade é que há uma perversa correlação entre epidemias e desigualdades. As classes vulneráveis são as mais afetadas, pois sentem mais diretamente os impactos da disseminação do vírus em razão dos marcadores de opressão e das fissuras e vulnerabilidades socioeconômicas.
Nossa sociedade brasileira tem a mácula de um passado escravagista e colonial, que após a abolição da escravidão negligenciou completamente os povos negros recém-libertos, que não foram minimamente contemplados por quaisquer políticas públicas de inclusão social. Nesse sentido, importante destacar a profunda e entranhada desigualdade social como o maior legado da escravatura e do autoritarismo no país. Grassou, no Brasil, do Século XVI ao Século XIX, uma escandalosa injustiça amparada pela artimanha da legalidade. A escravidão foi bem mais do que um sistema econômico: ela moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez da raça e da cor marcadores de opressão e de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade marcada por uma hierarquia social muito estrita. A escravidão nos legou uma sociedade autoritária e iníqua, a qual tratamos de reproduzir, o que nos legou uma série de problemas à nossa agenda republicana, em prejuízo ao aperfeiçoamento democrático e sua promessa de igualdade. (SCHWARCS, 2019).
Nesta perspectiva, ocorreu uma certa naturalização da condição de subalternização e da desigualdade de direitos das pessoas negras, notadamente da mulher. Vale ressaltar que no início do movimento feminista, enquanto as mulheres brancas lutavam por direito ao voto, ao trabalho e à propriedade, as mulheres negras sequer eram vistas como seres humanos e incluídas nas reivindicações. Precisamente por essa razão, foi necessário apontar os limites do feminismo hegemônico, assim como a ideia de mulher branca como referência de luta. Desta feita, as primeiras feministas desconsideraram que suas pautas estavam longe de contemplar as especificidades das mulheres negras, o que resultou no feminismo negro. No contexto da pandemia, torna-se imprescindível uma reflexão concernente sobre seus efeitos na vida das mulheres, especialmente das mulheres negras. Isso porque mulheres negras estão na base da pirâmide social, na qual vem primeiro os homens brancos, mulheres brancas, homens negros e por último as mulheres negras. Por essa razão, a filósofa estadunidense, Angela Davis (2018) afirma que quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.
Considerando o lugar social ocupado pela mulher negra, a reflexão torna-se intrinsicamente relevante, tendo em vista que mesmo no período de normalidade social, suas vidas já são marcadas pela precarização, notadamente no mundo do trabalho, de modo que raramente ocupam posições de prestígio. Não se pode levar a cabo essa reflexão sem compreender que na sociedade brasileira, a mulher negra passou por longo período de reificação, vista como a mulata sexualizada ou a negra que desempenhava os trabalhos pesados não só na casa grande, mas também nas lavouras. Ocorre que essa realidade não é simplesmente um fato histórico, ou uma reminiscência do passado. Trata-se de uma mentalidade que permanece presente no imaginário social.
Dessa forma, as mulheres negras estão majoritariamente nas ocupações menos valorizadas social e economicamente, certamente como resultado de um passado escravocrata e colonial. Nas palavras de Ribeiro (2019 p. 84): “As mulheres negras escravizadas eram tratadas como mercadoria, propriedade, portanto não tinham escolhas.”. A este respeito, Hooks (2019) faz uma interessante análise sobre os efeitos políticos e sociais do estupro da mulher negra norte americana que, com as devidas ressalvas, pode ser extensiva às mulheres negras brasileiras. A autora ressalta que os estupro como prática reiterada, que no Brasil teve como uma das consequências, a miscigenação do seu povo, não significou apenas a destruição da integridade física e sexual dessas mulheres. Essa prática violenta, que certamente é a forma mais brutal de submissão da mulher, já que o corpo também é sede da cidadania, deixou marcas indeléveis que o passado escravocrata não apagou.
Ademais disso, no Brasil permanece a uma espécie de corrosão da identidade da mulher negra, amplamente veiculada na sociedade e utilizada para a manutenção da sua situação de inferioridade de modo que no mundo do trabalho há uma certa naturalização de que as funções que lhes são adequadas é a de empregada doméstica ou o desempenho de outras atividades desprovidas de prestígio social. Essa realidade fica particularmente evidente quando se constata que de acordo com o Censo Superior de Educação com dados de 2016, menos de 3% das docentes dos cursos de pós-graduação do Brasil, incluindo instituições públicas e privadas, são negras. Esse percentual, ínfimo, engloba as mulheres que se auto declararam pretas e pardas. Entretanto, quando se considera os dados sobre as mulheres que auto declararam pretas, o universo é ainda menor, em torno de 0,4%. O mesmo Censo apontou que as mulheres brancas representavam 19% das docentes. Contudo, quando se trata de trabalho doméstico, são as mulheres negras que majoritariamente executam esse trabalho.
Considerando que atuar nos programas de pós-graduação, no Brasil, é conquistar o topo da carreira docente, esses dados revelam os traços inegáveis do racismo estrutural que se perpetua na sociedade brasileira, que é alimentado, dentre outras coisas, pelo não estranhamento da ausência de pessoas negras em espaços de poder, em uma sociedade constituída por uma população de maioria negra. O racismo estrutural, essa grande vergonha moral, no dizer de Almeida (2019, p. 50), é “uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural”. Uma das possibilidades de alterar essa realidade é começarmos a questionar por que não há pessoas negras, na mesma proporção que pessoas brancas, nos espaços de poder? Cabe perguntar ao leitor ou leitora, quantas professoras negras você teve em sua formação acadêmicas? Essa invisibilidade não pode ser naturalizada
O processo contínuo e sistemático de discriminação e preconceito de todas as ordens concorre para a construção social de certos estereótipos da mulher negra como a mulata disponível ao sexo fácil, inclusive amplamente difundida no exterior, ou a da negra empregada doméstica. Dificilmente há uma assimilação à imagem de uma intelectual, por exemplo. Esse processo alimenta a destituição da humanidade dessas mulheres, de modo que, historicamente, seus corpos têm sido o elemento que assegura sua sobrevivência. O corpo violado, o ventre gerador para fins econômicos com o lucro da comercialização dos seus filhos, o corpo da ama-de-leite que não podia alimentar seus próprios filhos porque era obrigada a amamentar os filhos da sinhá e, atualmente, o corpo que suporta o pesado fardo do interminável trabalho subalterno.
Ora, em razão de um passado escravagista marcado por extrema subalternização, as mulheres carregam múltiplos marcadores sociais traduzidos pela interseccionalidade, ou seja, pela intersecção de vários níveis de opressão como raça, gênero e classe. O cenário gerado pela COVID-19 nos provoca a refletir sobre a situação da mulher negra no que concerne sobre como elas estão assegurando sua sustentabilidade econômica, dado que constituem um universo considerável entre as mulheres com trabalhos precarizados e subalternos. Todavia, a despeito desse lugar social, elas não podem ser vistas, de acordo com Collins (2019 p.12), como super-heroínas destemidas, ou como vítimas oprimidas que precisam ser salvas. Trata-se de mulheres que, segundo o Instituto Locomotiva (2019), movimentam por ano em torno de 704 bilhões, ou seja, que resistem, que lutam para ser reconhecidas como pessoas que podem atuar de forma competente no espaço público.
Todavia, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) aponta que mulheres negras apresentam uma vulnerabilidade ao desemprego, 50% maior que mulheres não negras. Dessa forma, estão mais vulneráveis aos efeitos nefastos da pandemia, embora seja necessário ressaltar que a vulnerabilidade não é um atributo do sujeito, mas uma condição sob a qual as pessoas são postas. Com o intuito de investigar os efeitos da pandemia na vida das mulheres negras, o Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), uma organização que busca dinamizar a promoção racial no mundo do trabalho, realizou um levantamento com mais de 200 mulheres negras em 19 Estado e no Distrito Federal. Entre as respondentes haviam mulheres que atuam formalmente em empresas nacionais e multinacionais, assim como mulheres empreendedoras. O objetivo da pesquisa era verificar como elas estão enfrentando o atual momento de crise em razão da COVID-19. Os dados do levantamento apontam que as profissionais que atuam em empresas nacionais e multinacionais, em sua maioria em cargos do baixo escalão, 76,4% afirmaram que seu maior receio na pandemia é a perda do emprego. Certamente porque reconhecem que mesmo em tempos de normalidades, as portas das organizações são muito mais estreitas para mulheres negras do que para mulheres brancas. Esse receio é vivenciado como algo real, razão pela qual 39,7% delas apontaram para a necessidade de apoio psicológico. Entre essas mulheres, apenas 13,2% temem por sua saúde, o que revela que a maior preocupação é com a subsistência pessoal. De outro modo, 72% das respondentes se encaixam no perfil de empreendedoras. Entretanto, “empreender” não é necessariamente uma opção para essas mulheres, mas geralmente a única via para a subsistência em virtude de não conseguir um emprego. Isso fica particularmente claro quando se constata que 80% delas não dispõem de reserva financeira, tampouco de um plano de negócio ou planejamento que pudesse garantir sustentabilidade econômica em tempos de pandemia. O estudo revelou que 44% delas possuem recurso para manter o negócio por apenas mais um mês e que o custo médio mensal do empreendimento é de R$ 1mil a R$ 5mil reais, portanto, valor bem acima do auxílio emergencial concedido pelo poder público. Em virtude disso, a maior necessidade apontada pelas empreendedoras é de capital de giro para a manutenção do negócio.
Diante do exposto, é cabal a necessidade de elaboração de políticas públicas, notadamente tendo a interseccionalidade como metodologia para a concretização de políticas eficazes, que leve em conta que sobre os corpos de mulheres negras incidem vários eixos de subordinação como raça, classe e gênero, e que qualquer medida pública ou privada que não considere essa perversa realidade, está fadada ao insucesso. O receio de perder o emprego, assim como de não conseguir manter o próprio negócio e perder a subsistência não foram engendrados pela crise da COVID-19. Foram agravados em razão das consequências dramáticas da crise sanitária, econômica e humanitária. A verdade é que eles têm raízes históricas fincadas em uma sociedade com profunda desigualdade social, de modo que é urgente a eficiência na distribuição de recursos e créditos. É preciso também considerar que no momento em que a presença da mulher negra em espaços de poder e visibilidade não for uma exceção, teremos bases sólidas de uma sociedade que promove e constrói identidades diversificadas, assim como fomenta representações indispensáveis a qualquer sociedade que se pretenda democrática, justa e plural.
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REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política de empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018
HOOKS, Bell. Teoria Feminista negra: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019
HOOKS, Bell. E eu não sou uma mulher?: mulheres negras e feminismo. Rio de Janeiro; Rosa dos tempos, 2019
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das letras, 2019.
SCHWARCS, Lilia. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.