Yasmin Dolores de Parijós Galende
Mestra em Direitos Humanos pelo Centro Universitário do Pará (CESUPA). Professora da Faculdade Estácio de Castanhal – Pará. Integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito.
Loiane Prado Verbicaro
Professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito.
Ainda que o presente milênio seja marcado com graves epidemias, como a gripe espanhola, do início do século XX, que chegou a contaminar 500 milhões de pessoas, com estimativas de até 50 milhões de mortos; os surtos altamente infecciosos e mortais do ebola na África; os quadros respiratórios e infecciosos agudos de gripe suína e de H1N1; entre outras enfermidades de elevado contágio e morbidade, jamais vislumbraríamos, no século XXI, que o mundo pararia diante de uma avassaladora pandemia do novo coronavírus, deixando cidades inteiras quase suspensas em suas atividades comerciais, artísticas, culturais, políticas, esportivas, lúdicas, escolares e trabalhistas. Segundo a antropóloga Lilia Schwarcs, provavelmente, a pandemia inaugurará uma nova era e será conhecida como o marco para o fim do Século XX, com todas as possíveis mudanças e rupturas que poderão advir desse momento.
Esse cenário inimaginável, que implementa um clima de guerra, medo e incertezas diante da devastidão da doença e da constatação da fragilidade da vida, tem permitido uma ampliação das nossas lentes para uma melhor leitura dos problemas preexistentes que, em tempos epidêmicos, são agravados. O fato é que as condições de desigualdade socioeconômica do país, com 50 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha demarcatória da pobreza, correspondente a 25% da população, conforme dados do Banco Mundial, associadas a precárias políticas pró-cíclicas de programas discricionários assistenciais de combate à pobreza, que são notoriamente insuficientes para a garantia de um mínimo de dignidade, e a uma agenda perversamente desumana, com medidas liberalizantes e baseadas na austeridade fiscal e no desmonte da proteção trabalhista e da rede de cuidado social, têm gerado o agravamento dessa desigualdade e outras consequências dramáticas, especialmente às camadas que constituem a base da pirâmide, que são os mais afetados em momentos epidêmicos. Hoje, dia 1º de maio de 2020, dia internacional do trabalhador, dedicaremos esse breve texto a algumas reflexões sobre o avanço do retrocesso e o agravamento da precarização das relações trabalhistas no Brasil, com enfoque nas medidas que vêm sendo adotadas pelo Governo brasileiro em descompasso com a proteção dos direitos dos trabalhadores.
Inicialmente, é premente demarcar que os direitos constitucionalmente assegurados aos trabalhadores brasileiros vêm sofrendo duros golpes no país desde a reforma trabalhista realizada em 2017, no Governo Temer, que, ademais de fragilizar a proteção social trabalhista, passou a implementar uma versão excepcionalmente excludente do neoliberalismo, ao priorizar uma agenda de supressão de direitos sociais e contenção dos gastos públicos, diretrizes essas seguidas e reforçadas pelo atual governo Bolsonaro, com impactos corrosivos na rede de proteção social. Assim, a reforma trabalhista já havia instaurado modificações na legislação que acabaram por incentivar a precarização das relações de trabalho, prejudicando o trabalhador tanto em seus direitos materiais quanto na possibilidade de recorrer a ferramentas processuais para reivindicar direitos perante a Justiça do Trabalho.
Exemplificando, com a justificativa de combater o desemprego, criou novas formas de contratação que reduziram os custos ao empregador a partir da diminuição da proteção ao trabalhador, medida que no plano prático apenas resultou no aumento gravoso da informalidade. Também tornou-se mais difícil ao empregado procurar reparação de seus direitos violados, pois o processo ficou mais caro ao trabalhador – mesmo aqueles considerados hipossuficientes passaram a pagar algumas custas do processo e, na hipótese de improcedência do pedido, a pagar também honorários ao advogado da empresa, mesmo que reconhecidamente não tenham condições de sustentar-se com dignidade, o que fez o número de ações trabalhistas diminuir drasticamente. Ademais, outras medidas foram adotadas como a quantificação da reparação por danos morais proporcional ao salário do empregado, mantendo, assim, a cadeia de privilégios socioeconômicos. A lei reformada também garantiu o desmanche da proteção social coletiva ao relativizar o pagamento das contribuições sindicais pelo empregado, o que fez diminuir a arrecadação sindical e, consequentemente, a sua força de atuação e reivindicação.
Outrossim, em meio à pandemia, as medidas de flexibilização das relações laborais foram reforçadas por meio de atos unilateralmente produzidos pelo atual Presidente da República, a exemplo da Medida Provisória (MP) nº 927, apelidada de MP do extermínio, que, ao priorizar patrões e empresários, estabeleceu a possibilidade de suspensão dos contratos de trabalho por quatro meses. Sob forte pressão de diferentes setores da sociedade, o Presidente retrocedeu em menos de 24 horas, revogando essa possibilidade. Ainda que tenha retrocedido na decisão, esse fato sinaliza a manutenção do ímpeto de flexibilização e supressão dos direitos trabalhistas. Ainda assim, desde a instauração do estado de calamidade pública decorrente do COVID-19, o Governo Federal continuou editando uma série de Medidas Provisórias (nº 927, 936, 945, 946, entre outras) sobre o novo tratamento das relações de trabalho, deixando nítida a prevalência dos acordos individuais realizados entre o patrão e o empregado em detrimento das negociações coletivas, mesmo em matérias nas quais a Constituição Federal exige maior proteção ao trabalhador. Em novo exemplo, algumas das alterações envolvem: a possibilidade de o empregador antecipar as férias do trabalhador (inclusive outros períodos futuros de férias), sem precisar realizar o pagamento antecipado da remuneração, podendo este valor ser pago no mês seguinte ao gozo das férias, e ainda sem o acréscimo de 1/3 do salário sobre as férias previsto pela Constituição, este podendo ser pago até dezembro de 2020; a possibilidade de constituição de um banco de horas no qual as horas que o trabalhador não laborar durante o período de quarentena serão compensadas posteriormente com períodos em que ele trabalhará com prorrogação de jornada em até dez horas diárias, compensação esta que poderá ser determinada pelo empregador independentemente de convenção coletiva ou acordo individual ou coletivo; e uma das mais gravosas, prevista pela MP nº 936: a possibilidade de o empregador reduzir o tempo das jornadas de trabalho do trabalhador, com a consequente redução do salário correspondente em até 70% do seu valor, feito por simples acordo individual, quando a Constituição Federal expressamente prevê que qualquer alteração no salário do trabalhador deve ser feita por negociação coletiva, uma vez que estas verbas servem para o sustento e a manutenção da sobrevivência minimamente digna do indivíduo, e por isso demandam maior proteção contra negociações arbitrárias. Essa infringência à proteção trabalhista foi legitimada, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal que, em controle de constitucionalidade da MP 936, ratificou a possibilidade de alteração salarial sem negociação coletiva, deixando o trabalhador em uma situação incontornável de assimetria, desequilíbrio e vulnerabilidade.
A justificativa para essas medidas é a manutenção do emprego e da renda. No entanto, a realidade é que elas ampliam a fragilidade do trabalhador em face do interesse empresarial, bem como escancaram as estratégias de assujeitamento em conformidade às normas que reverberam no dispositivo de poder neoliberal, cujo objetivo é ampliar os preceitos do individualismo e da economia de mercado para além da estratégia econômica, tornando-se uma forma de constituição dos próprios sujeitos. Para garantir que o mercado seja, de fato, o mecanismo regulador da população, é preciso que suas premissas estejam inscritas na constituição dos sujeitos políticos e nas mais diversas esferas da sociabilidade, portanto os principais pilares desta governamentalidade neoliberal estão na criação de uma sociedade concorrencial e no empresariamento da vida, em que o indivíduo se torna “empresário de si mesmo” e sua vida passa a ser compreendida enquanto capital humano. Nesta medida, a norma de conduta passa a ser a concorrência interindividual, sustentada por regimes econômicos de desmanche das conquistas e das instituições garantidoras dos direitos sociais, bem como das proteções coletivas aos trabalhadores; pelo incentivo à meritocracia; a precarização (ou uberização) das relações e legislações trabalhistas; entre outras medidas que criam novas formas de subjetivação isentas de preceitos de solidariedade e redistribuição, formando aí um indivíduo (neossujeito) autocentrado e egoísta, que se relaciona consigo e com os outros nos mesmos moldes do concorrenciamento empresarial, e sob a similar lógica da prosperidade a partir do lucro.
O neoliberalismo atua de modo vigilante, sempre a favor do mercado. Nesse sentido, se setores estratégicos apresentarem sinais de instabilidade, o Estado os socorre, bancando os riscos da atividade econômica, afinal, são “too big to fail” e, portanto, dignos de ajuda estatal, ainda que isso represente um keynesianismo de resgate dispendioso às custas das massas empobrecidas. A estratégia neoliberal não é econômica sem ser ao mesmo tempo subjetiva. Ela espraia-se a todas as esferas da vida, determinando que os indivíduos se vejam como empresas de máxima performance. É a figura do neossujeito, indivíduo que foi levado a crer que irá ascender economicamente mediante o seu próprio esforço individual e que ao se submeter a formas de trabalho precarizadas que não reconhecem seus direitos trabalhistas mínimos – ou que sequer reconhecem na sua atividade uma relação de emprego, como é o caso dos motoristas de Uber e daqueles vinculados a aplicativos de entrega de produtos e alimentos – estaria assumindo os riscos do empreendedorismo, dispensando a proteção trabalhista e naturalizando a precarização e o consequente desamparo da proteção social. Para o sujeito neoliberal, o individualismo concorrencialista e meritocrático é a fórmula que rege todas as suas relações, de modo que quaisquer falhas na dinâmica laboral e no sucesso individual são atribuídas à sua própria incompetência, infortúnio ou malogro. Desta feita, o Estado desincumbe-se da proteção social, apostando na defesa da ampla liberdade de mercado com rígidos limites ao uso estatal para fins de política social e oposição aos esquemas de tributação redistributiva, nos moldes de um capitalismo irrestrito sem compromissos sociais como o único capaz de garantir trocas livres.
No cenário de crise aguda da pandemia, há preocupações trabalhistas, além das já mencionadas, que podem parecer de somenos importância, mas que merecem atenção, como os novos formatos emergenciais dos contratos de trabalho em época de isolamento social, reforçando as premissas flexibilizadoras da proteção social, além de outras que ensejam um olhar cuidadoso, a exemplo da substituição das jornadas de trabalho presenciais pelo teletrabalho (home office). Nos regimes de trabalho à distância, a vigilância imediata dos corpos é substituída por um regimes de metas, pela disposição do trabalhador ao empregador em tempo integral por via das redes virtuais de comunicação, sem proteção expressa aos intervalos intrajornada, horas extraordinárias, entre outros direitos, o que se agrava ainda mais quando a trabalhadora (mulher) acumula as funções da reprodução social do cuidado com as tarefas laborais, gerando uma sobrecarga excessiva de trabalho, com consequências à saúde emocional e psicológica. Trata-se da divisão sexual do trabalho que estrutura não somente a reprodução do capital, mas também a distribuição das funções e dos papéis sociais.
O neossujeito é ludibriado pela lógica do “empreendedor de si” e acredita que precisa se adaptar a quaisquer ditames do sistema econômico para ter sucesso e ascensão individual, e desse modo se torna um corpo dócil que acata as alterações impostas pelas instituições de governo às suas relações de trabalho, sem perspectiva segura de que tais alterações serão posteriormente revertidas ou compensadas. São indivíduos que aderem a essas premissas com todos os riscos e impactos que podem advir para a sua vida, saúde e proteção, ainda mais acentuados diante da pandemia e do (des) governo presidencial que se vale de medidas de precarização das relações de trabalho em nome da realização de sua política liberalizante.
Todo esse cenário é agravado com a crise econômica no mundo e, em especial, no Brasil que, segundo relatório do Banco Mundial, provocará uma retração em torno de 5%, com impactos no número expressivo de desempregados, em torno de 25 milhões, com o consequente recrudescimento da pobreza e desigualdade, o que acena ao fortalecimento de uma agenda de austeridade, reformas e ajustes estruturais de retração do Estado para a recomposição e compensação dos prejuízos amargados, o que, invariavelmente, vem acompanhado de um discurso de modernização do Estado, com potencial de inovação, liberdade e diretrizes de eficiência administrativa. Atrás da fachada democrática e de inovações econômicas, sociais e institucionais há o reforço de um histórico de desigualdade e violência, com o aumento da vulnerabilidade, iniquidade e fratura social, e onde o direito se torna mais um dos instrumentos de concretização do neoliberalismo e das desigualdades historicamente construídas e sistematicamente firmadas no Brasil.
Vê-se, portanto, no Brasil, o avanço do retrocesso, com a degradação das condições de trabalho e a retirada de direitos trabalhistas, inscrevendo-se no processo de profunda ruptura civilizatória em que a democracia como igualdade e autonomia submergem diante da versão da barbárie de uma “democracia” como riqueza sem limite e poder sem constrangimento de afronta.
P.S. Registramos com alegria a criação do Grupo de Pesquisa “Novas formas de trabalho, velhas práticas escravistas”, coordenado pelas Professoras Suzy Koury (Cesupa) e Valena Jacob (UFPA), com a colaboração do pesquisador Prudêncio Neto (UFPA). Uma pauta de pesquisa tão necessária quanto urgente em tempos de precarização das relações de trabalho que nos remete ao autoritarismo instituído pela escravidão, o qual tratamos de reproduzir contemporaneamente. Para mais informações: gpnovasformasdetrabalho@gmail.com.
#redebrasileirademulheresfilosofas
REFERÊNCIAS
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
LEMKE, Thomas. Foucault, governamentalidade e crítica. Tradução de Eduardo Altheman Camargo Santos. PLURAL, Revista do Programa de Pós‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v. 24.1, 2017, p. 194‑213.
SANTOS, Wanderley Guilherme. A Democracia impedida. O Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2017.
SCHWARCS, Lilia. 100 dias que mudaram o mundo. Entrevista publicada no Universa, em 5 de abril de 2020.