Durante o processo de organização do Prêmio Filósofas 2022, nós, participantes da comissão organizadora, nos deparamos com o questionamento de algumas pessoas a respeito da pertinência de se reproduzir o modelo masculino dentro da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, por meio de uma premiação que levaria em conta um suposto mérito acadêmico e estimularia a competitividade entre mulheres. Consideramos essa crítica coerente, especialmente se levarmos em conta o contexto político do qual acabamos de nos ver livres, onde abundaram prêmios na mesma medida em que escassearam recursos, investimentos e bolsas. Ao mesmo tempo, cremos que o Prêmio Filósofas não deixa de ter a sua relevância nesse mesmo contexto – considerando agora a sua estrutura sexista e as dificuldades de várias ordens que as mulheres encontram para dar continuidade aos seus estudos e pesquisas (ver os dados recolhidos pelo projeto de extensão ‘Quantas Filósofas’, coordenado por Carolina Araújo e Ulisses Pinheiro, que mostram que há um problema, não de ingresso feminino, mas de permanência nos Departamentos de Filosofia).
Esse dilema nos levou a discutir internamente a questão e a concluir que seria vantajoso convidarmos as filiadas e/ou amigas da Rede a pensar juntas sobre o assunto. Daí a iniciativa de abrir este fórum de discussão, que pretende promover um debate amplo e recolher visões e reflexões variadas sobre o assunto. A título de pontapé inicial e para lançarmos o debate, propomos a seguir um breve resumo do problema.
Por um lado, a Rede Brasileira de Mulheres Filósofas trabalhou cuidadosamente para que todas etapas do Prêmio Filósofas importassem, e não apenas o seu resultado final. Ao longo do processo, diversos trabalhos de mulheres são lidos por membros de seus PPGFIL’s de origem para a pré-seleção, bem como circulam em Programas externos para a avaliação. Ademais, a lista de todos os trabalhos indicados é divulgada no site da Rede, e não apenas a lista dos trabalhos premiados. Ainda são produzidos e divulgados no mesmo site pequenos vídeos em que cada pesquisadora fala do seu trabalho. Por fim, o Prêmio Filósofas garante a publicação da dissertação e da tese vencedoras, promovendo a circulação de duas obras filosóficas feitas por mulheres. Tudo isso contribui, no mínimo, para que mais pessoas desejem orientar mulheres e para que mais mulheres permaneçam na academia. Em suma, é difícil pensar em retirar as mulheres das competições e ao mesmo tempo ajudá-las a sobreviver em um mundo competitivo, pensando a curto prazo.
Por outro lado, também é difícil imaginar que possamos contribuir para desmontar imaginários arraigados de mérito e de competição quando trabalhamos para nos adaptar a esses mesmos imaginários. Ainda mais considerando que o processo do Prêmio inclui avaliações, pareceres, comparações, prazos curtos e prestígio para os PPGFIL’s ganhadores, o que remete decididamente ao modelo dominante, isto é, aquele que historicamente tendeu a excluir muito mais as mulheres do que os homens. Ou seja, há uma lógica competitiva na qual estamos inseridas, mas que precisamos criticar, mesmo que não possamos dela escapar inteiramente. Nesse sentido, achamos importante indagar: será que a proposta da Rede deve se limitar à reivindicação de mais lugares para as mulheres no mesmo mundo masculinizante, ou deve almejar uma atuação que procure transformar aos poucos esse mundo acadêmico? Será que a melhor providência seria abandonar o Prêmio Filósofas e substituí-lo por outras práticas? Ou seria mantê-lo, mas substituir os seus procedimentos, apostando, por exemplo, no modelo do sorteio ou em qualquer outro que possa driblar o imaginário do mérito? Ou ainda, mantê-lo tal como foi projetado, mas complementar a sua atuação com propostas que caminhassem contra a corrente da competitividade?
De nossa parte, acreditamos que talvez seja possível apostar no alargamento de nossas imaginações e na existência de alternativas a esses dois polos brevemente expostos. Talvez possamos pensar no Prêmio como uma posição circunstancialmente estratégica ou como uma atuação provisória, que trabalhe para cavar e consolidar um lugar para as mulheres no âmbito das instituições, sem desistir de contribuir para a substituição do atual modus operandi desses mesmos locais. Porém, isso evidentemente não é fácil quando se pensa na pragmática de uma premiação e nos limites inerentes a essa iniciativa.
Diante do impasse, nossa primeira providência foi escrever este texto de abertura do fórum de discussões que ele se propõe a fomentar. Está lançada a questão, sem necessariamente estarmos atrás de uma resposta definitiva. Já seria suficientemente relevante se conseguíssemos abrir um espaço para a reflexão sobre mais formas de atuar no campo acadêmico filosófico apoiando trabalhos de mulheres. Convidamos todas vocês a contribuirem com suas opiniões.
A comissão.
A primeira pergunta que me veio à cabeça na primeira vez que li esse post foi: O que tem de masculino a competitividade? Esse não é um ponto obvio. Mesmo assim, é claro que no nosso contexto a competição e a meritocracia estão muito próximas uma da outra.
Sem dúvida é preciso questionar os mecanismos que existem no ámbito acadêmico e que muitas vezes acabamos reproduzindo por tradição ou de forma automática, nesse sentido, considero que a busca por novas formas de visibilizar o trabalho das mulheres dedicadas à filosofia é muito pertinente.
Acredito que a visibilização do nosso trabalho não cumprirá o seu objetivo se simplesmente um dia pararmos de ser competitivas ou se decidimos, do dia para a noite, parar de se inserir em uma o mais tradições do sistema acadêmico vigente. A saída das dinâmicas nocivas do nosso meio será, se acontecer, um processo. No imediato, parece que aproveitar as vantagens que o Prêmio Filósofas dá para as autoras e para os Programas de Pós-Graduação é compatível com tentar visibilizar as obras das Mulheres Filósofas do Brasil a partir de outros mecanismos não competitivos.
Um problema que impede de pensar em mecanismos diferentes ao atual é que, em muitos dos casos, nós mesmas não estamos prontas para sair da lógica da meritocracia que está muito enraizada no sistema educativo no qual fomos formadas. Como iremos aceitar o reconhecimento da qualidade das teses e dissertações premiadas se não na forma de revisão, seleção e "destaque" dentre outros trabalhos?
Uma sugestão para visibilização não competitiva é fazer destaques das teses e dissertações por região ou por estado, principalmente procurando descentralizar a filosofia das regiões Sul e Sudeste do Brasil.
Outra sugestão, que poderia favorecer a discusão sobre como entender a competitividade, masculinidade e outros traçõs do modelo acadêmico/social dominante nos departamentos de filosofia, seria organizar uma série de conferências, nas quais colegas especializadas nesses temas ajudem entender e discutir melhor as caracteristicas do modelo atual e as alternativas que se têm.
Finalmente, volto à minha pergunta inicial questionado: o que tem de masculino a competitividade? E continúo: Existe algúm traço de comportamento feminino no qual fixarmos para melhorar as nossas práticas como profissionais?