Carolina Araújo
UFRJ/CNPq/Faperj
Dataphilo/Quantas Filósofas?
1. Introdução
Pelo menos desde 2016, no que se cunhou como “Primavera das Filósofas”, a comunidade filosófica brasileira tem debatido a evidente sub-representação de mulheres (e também de pessoas trans, racializadas, com deficiência e outros) em seu meio. Não há apenas uma causa desse fenômeno, trata-se de uma aglomeração de fatores diversos que aos poucos vão sendo identificados, conceituados e compreendidos, resultando em certas mudanças de comportamento. Quando falamos especificamente de mulheres, um grupo desses fatores é identificável como violência de gênero. Há várias espécies dessa violência, algumas criminais e outras não. Em novembro de 2023, a Rede Brasileira de Mulheres Filósofas (RBMF) lançou o Protocolo de Enfrentamento da Violência de Gênero (www.filosofas.org/protocolo) que recomendava boas práticas à comunidade acadêmica a partir das várias espécies de violência de gênero. Se a finalidade primeira deste documento era uma intervenção no cotidiano, ele também contribuiu com um vocabulário mais especializado a partir do qual se identificar essas espécies de violência. Se então passamos a contar com uma abordagem conceitual e prática, ainda nos faltava o lastro histórico a que o Protocolo se referia.
A violência de gênero é uma experiência: ela é sofrida por uma pessoa, em um contexto, um tempo, um espaço, uma situação de poder. A sua evidência histórica é dada por seus efeitos e pela narrativa dessa experiência, o testemunho. Idealmente, à violência de gênero se seguiria uma denúncia formal a instituições que restituiriam a dignidade atingida. Historicamente, porém, denúncias não encontram canais ou, quando os encontram, eles raramente restituem a dignidade e frequentemente expõem a vítima a mais violência. Essa descrença no resultado das denúncias faz com que as vítimas restrinjam seus testemunhos a conversas privadas, redes de sussurros ou paredes de banheiros públicos. A quem não é ouvinte dessas mensagens poderia parecer que essa violência não existe, e que os seus efeitos visíveis – como a dita sub-representação – são incidentais, eventos curiosos e sem justificação. Para quem não vê causas para esses efeitos, as indicações do Protocolo poderiam parecer supérfluas, daí a necessidade do lastro histórico. Se o dilema é de que a prova da violência depende da denúncia e a denúncia gera mais violência, a saída parece ser expor a narrativa sem expor a vítima, mostrar o relato a quem não o veria de outro modo e fortalecer uma mudança no ethosque finalmente leve a instituições capazes de acolher denúncias sem gerar mais violência.
A RBMF está trabalhando em um projeto de relato de narrativas que preservem as vítimas, nas quais se revelaria os detalhes pertencentes a cada uma das violências, dando ao leitor uma impressão vívida da situação. No entanto, porque as narrativas são situadas, mesmo uma série delas não resultaria em um panorama da situação coletiva. É preciso um mecanismo que as compare, conecte e quantifique sua ocorrência e gravidade. Foi com este propósito que a RBMF decidiu fazer uma enquete a suas membras. Trata-se de uma categorização de narrativas de violência de gênero a fim de descrevê-la de acordo com suas espécies e em função de diferentes variáveis. Nesse sentido, este relatório é a descrição de um cenário oriundo de narrativas. Enquanto tal, ele não tem o intuito de provar a verdade sobre os fatos narrados: o local desse exame são as instituições de acolhimento de denúncias. O propósito, ao contrário, é fazer escutar os relatos sobre violência de gênero sofrida pelas filósofas brasileiras em sua versão sistemática.
2. Procedimento
Entre 10 e 28 de fevereiro de 2025, filósofas membras da RBMF responderam a uma enquete sobre a violência de gênero que sofreram ou sofrem. Pelas regras de acesso, apenas mulheres, cis ou trans, portadoras de um diploma em filosofia (de graduação e/ou pós-graduação) atestado pela Plataforma Lattes preencheram o formulário. Todas elas consentiram livre e esclarecidamente a cessão das informações concedidas com a finalidade da redação deste relatório, desde que preservado o sigilo de sua identidade. O controle de acesso tornou também possível eliminar duplicatas de preenchimento, o que resultou em 89 preenchimentos válidos, todos eles comprovadamente feitos por filósofas.
A enquete consistia em uma pergunta básica, que admitia até nove respostas por respondente, e que poderia ser respondida até 8 vezes, indicando, em cada uma delas, uma violência diferente. A pergunta era:
Qual violência de gênero você já sofreu (ou sofre) em ambiente profissional da filosofia?
1. Silenciamento: Interrupção ou inibição do seu discurso, manterrupting
2. Apropriação do seu discurso: mansplaining, bropriating
3. Desqualificação aberta de sua capacidade intelectual ou conduta moral: slut shaming, gaslighting
4. Desqualificação em avaliação profissional apenas pelo fato de ser mulher: vieses implícitos ou explícitos
5. Discriminação: exclusão ou restrição profissional por ser uma mulher
6. Assédio moral: violação de dignidade por conduta abusiva
7. Assédio sexual: conduta abusiva que constrange a liberdade sexual
8. Violência sexual: importunação sexual ou estupro cometidos por pessoas do ambiente profissional
9. Nunca sofri nenhuma violência de gênero em ambiente profissional da filosofia. Caso essa seja a sua resposta, depois de marcá-la você pode
Sobre a resposta dada a este item, a respondente deveria ainda indicar responder:
Com que frequência essa violência ocorreu (ou ocorre) com você?
· Caso isolado: Uma única vez
· Ocasionalmente: de duas a cinco vezes na sua carreira
· Reiteradamente: uma vez a cada três anos
· Regularmente: uma vez por ano
· Frequentemente: mais de duas vezes por ano
Essa violência ocorreu (ou ocorre) em que fase da sua carreira? (Você pode escolher várias fases)
· Como estudante de graduação
· Como mestranda
· Como doutoranda
· Como pós-doutoranda
· Como professora da Educação Básica
· Como professora do Ensino Superior
Qual é o nome da(s) instituição(ões) em que essa violência ocorreu (ou ocorre)?
A instituição do caso é um fator relevante no cenário, uma vez que o objetivo de longo prazo é que as instituições possam tratar denúncias de modo eficiente. Entretanto, esta última questão levou a um cuidado especial na divulgação dos dados. Foi necessário não divulgar o nome de instituições que foram mencionadas uma só vez por tipo de violência, porque isso poderia levar à identificação da vítima e a novas violências. Os dados contabilizam, portanto. apenas instituições com duas ou mais menções.
Há uma limitação do típica do formato de enquete utilizado: ele não trabalha com grupos controlados. Por exemplo, ele não se compromete com que respondentes tenham igual representação regional, ou que haja proporção entre respondentes em diferentes estágios da carreira. Como indicado, a enquete foi aberta a todas as membras da RBMF. Consequências dessa abordagem podem ser identificadas em alguns aspectos dos resultados, a saber: De modo geral as respostas sobre violências ocorridas enquanto a respondente era pós-graduanda ou professora da educação básica são menos frequentes do que as demais categorias. Isso pode simplesmente decorrer do fato de que parte maior das respondentes não passaram por esses momentos na carreira. Na mesma linha de raciocínio, a indicação de instituições em que ocorreram violências não é suficiente para concluir que nessas instituições o silenciamento ocorre mais do que em outras, já que não há na enquete um controle das instituições frequentadas pelas respondentes. A alta menção pode estar relacionada ao tamanho e relevância dessas universidades na área da filosofia, bem como à quantidade de pesquisadoras atuando nesses espaços e com o fato de que parte maior das respondentes tenham passado por essas instituições. Portanto, a informação é apenas de que há relatos de que esses eventos ocorreram nessas instituições e não de que nessa instituição a violência é mais frequente do que em outras.
3. Quantitativos gerais
Como o formulário permitia até 8 respostas por respondente, obteve-se um total de 229 respostas, com uma média de 2,6 violências apontadas por cada respondente. A distribuição percentual das respondentes pelo tipo de violência sofrida é apresentada no Gráfico 1.

Segundo o Gráfico 1, apenas 8% das filósofas afirmam nunca ter sofrido violência de gênero. O tipo de violência mais relatado foi o silenciamento, com 45% das respostas. Assédio moral (37%), assédio sexual (36%), desqualificação em avaliação (36%) e desqualificação moral (33%) também foram relatados com alta frequência. Outras formas de violência incluem a apropriação do discurso (29%) e a discriminação (22%). A forma mais extrema de violência de gênero, a violência sexual, foi mencionada por 10% das participantes.
Se tomarmos em consideração o total de respostas – e não o total de respondentes, como no Gráfico 1 – chegamos à proporção descrita no Gráfico 2.

Levando-se em consideração uma escala de gravidade que vai da resposta “nunca sofri nenhuma violência” à resposta “sofri violência sexual: importunação sexual ou estupro”, o Gráfico 2 mostra que os dois extremos foram respostas mais raras e que as respostas intermediárias tiveram ocorrências semelhantes entre 9% e 18% das respostas. Silenciamento foi a categoria mais mencionada, representando 18% das respostas. Assédio moral, assédio sexual e desqualificação em avaliação aparecem com 14% cada. Desqualificação moral corresponde a 13%. Apropriação do discurso foi relatada por 11% e discriminação representa 9% das respostas.
4. Silenciamento
Identificado como a interrupção ou inibição do discurso da filósofa em ambiente profissional, o silenciamento é como vimos, a violência mais frequente reportada, o que é compatível com a sua posição de a menos grave das espécies em questão. A frequência com que cada uma delas sofreu silenciamento é descrita no Gráfico 3.

Segundo o Gráfico 3, 43% das filósofas afirmam ter sido silenciadas frequentemente (mais de duas vezes por ano) e 18% indicam que sofreram silenciamento regularmente (uma vez por ano), ou seja, mais da metade das filósofas que experimentaram silenciamento vivenciaram-no como algo rotineiro. 12% afirmam ele ocorreu reiteradamente (uma vez a cada três anos) e 25% relatam que isso ocorreu ocasionalmente (de duas a cinco vezes na sua carreira). Apenas 2% mencionam que foi um caso isolado. Assim, se 45% das filósofas entrevistadas experimentaram silenciamento e se 61% delas o sofreram reiteradamente: o silenciamento é mesmo a mais cotidiana das violências de gênero.

O gráfico 4 revela que o silenciamento acontece em diversas fases da carreira acadêmica, com pouca variação: 24% das pessoas que disseram ter sofrido silenciamento relataram que essa experiência ocorreu enquanto eram graduandas, 25% durante a fase de mestrado, 21% durante o doutorado e também 21% enquanto eram professoras do ensino superior. Como as respostas são múltiplas, essa distribuição estável é coerente com o caráter corriqueiro dessa experiência. Ademais, 5% passaram por isso na fase de pós-doutorado e 4% indicaram ter enfrentado silenciamento enquanto eram professoras da educação básica.

O gráfico 5 mostra a frequência percentual de menções a instituições onde filósofas relataram ter sofrido silenciamento. Como notado na seção sobre procedimentos, apenas instituições que foram indicadas duas vezes ou mais aparecem no gráfico. Os principais dados são: 19% disseram que o silenciamento ocorreu na UFRJ e 16% na USP. As menções à UERJ totalizam 9%. 7% das respostas indicaram ocorrência na UFSC e na PUC-RIO. Além disso, 5% relataram silenciamento na UNIFESP, UFAL, UFSM, UFRGS, UFOP, UFPB, UFBA e UFRGS.
5. Apropriação do discurso
O discurso próprio é uma marca distintiva do filósofo, de modo que a apropriação do discurso alheio é uma violência contra a expressão profissional dessa pessoa. O costume de homens se apropriarem do discurso de mulheres em espaços públicos ou profissionais foi denominado em jargão anglófono de “mansplaining” ou “bropriating”.

O Gráfico 6 apresenta a frequência com que filósofas relataram ter sofrido apropriação de seu discurso. A prevalência da resposta “ocasionalmente” (48%) – duas a cinco vezes na carreira – contrasta com os 28% de resposta “frequentemente”. Isso pode indicar que as respondentes tinham compreensões diferentes do significado de “apropriação do discurso”, uma relativa a questões de autoria e outra relativa a episódios orais cotidianos (que era a intenção da pergunta). Mas é também plausível que a prática seja mais usual em certos contextos e menos em outros, como veremos a seguir. Finalmente, 12% relataram sofrer regularmente de apropriação do discurso, 4% reiteradamente e 8% experimentaram apenas um caso isolado.

O Gráfico 7 mostra em que momento da carreira acadêmica as filósofas relataram sofrer apropriação do discurso. O maior índice de apropriação ocorre durante a graduação (49%), sugerindo que esse fenômeno afeta especialmente filósofas em sala de aula. A prevalência da graduação pode explicar a prevalência da resposta “ocasionalmente” no quesito anterior, já que, para pessoas que fizeram apenas a graduação em filosofia, duas a cinco vezes na carreira pode ser visto como algo frequente. De todo modo, esse dado deve alertar a comunidade filosófica para práticas de apropriação do discurso em salas de aula e outros ambientes da graduação. A apropriação do discurso foi relatada como ocorrida durante o mestrado por 12% das respondentes, durante o doutorado por 15%, durante o pós-doutorado ou como professora da educação básica por 9% e como professora do Ensino Superior por 6%.

O Gráfico 8 indica quais instituições foram mencionadas com maior frequência por filósofas que relataram ter seu discurso apropriado. A UFRJ aparece com a maior frequência (36%), seguida pela UFPR (18%) e UERJ/UFOP (ambas com 14%). A UNIFESP e a UFMG foram mencionadas em 9% das respostas.
6. Desqualificação moral ou intelectual
Em contextos profissionais, a desqualificação moral é identificada com o ataque à dignidade pessoal ou à posição profissional por referência ao caráter. Em contextos anglófonos, um tipo dessa desqualificação de mulheres por homens foi chamada de “slut shaming”, ou seja, a intenção de provocar vergonha ao identificá-las como “vagabundas” ou “vadias”. Outro tipo foi chamado de gaslighting, denominação inspirada no filme de George Cukor, que se caracteriza por desqualificar a capacidade intelectual das mulheres ao identificá-las como “loucas” ou “histéricas”.

O Gráfico 9 apresenta a frequência com que filósofas relataram ter sofrido desqualificação intelectual ou moral. A maioria das filósofas (48%) afirmou ter passado por esse tipo de desqualificação ocasionalmente, enquanto 28% relataram vivenciá-la frequentemente. Vemos aqui a mesma dupla tendência identificada quanto à apropriação do discurso, embora neste caso não cabe, como veremos a seguir, a explicação que relacionava a descrição da frequência como ocasional com o perfil de alunas de graduação. 4% das respondentes indicaram ter sofrido essa desqualificação reiteradamente, 12% regularmente e 8% como um caso isolado.

O Gráfico 10 apresenta a distribuição percentual das filósofas que relataram ter sofrido desqualificação intelectual ou moral ao longo de diferentes momentos de suas carreiras acadêmicas e profissionais. A maioria das ocorrências ocorre nos estágios iniciais da trajetória acadêmica, com graduandas (31%) e mestrandas (25%) sendo os grupos mais atingidos. Mesmo em posições mais avançadas, como professoras do ensino superior (23%), ainda há relatos significativos de desqualificação intelectual ou moral, evidenciando que o problema não se restringe apenas às fases iniciais da formação acadêmica. 8% das respostas acusaram desqualificação de doutorandas ou pós-doutorandas e 5% de professora da educação básica.

O Gráfico 11 apresenta a distribuição percentual das instituições acadêmicas mencionadas como local de desqualificação intelectual ou moral sofrida por filósofas. USP (17%) e UFRJ (17%) são as instituições mais mencionadas. A UERJ também tem um índice significativo (13%), sendo a terceira instituição mais citada. Outras universidades mencionadas incluem UFSC, UFPA, UFSM, UFBA e UFPR, todas com 9%. A PUC-RS aparece com um percentual um pouco menor, 8%.
7. Desqualificação em avaliação
Esta resposta indica que a filósofa relata que foi desqualificada em avaliação profissional pelo simples fato de ser uma mulher.

O Gráfico 12 apresenta a frequência com que filósofas relataram sofrer desqualificação intelectual ou moral em contextos de avaliação acadêmica. Mesmo que muitas filósofas relatem tê-la experimentado (36%), ela é uma violência sofrida mais raramente que as anteriores, com 69% das respostas apontando caso isolado (31%) ou ocorrente de duas a cinco vezes ao longo da carreira (ocasionalmente = 38%). 19% afirmaram que são desqualificadas em avaliação regularmente e 12% relataram sofrer desqualificação frequentemente.

O Gráfico 13 apresenta os momentos da trajetória acadêmica em que filósofas relataram ter sofrido desqualificação intelectual ou moral em avaliações. Como de se esperar, essa violência é mais frequente no período de formação: graduação (25%), mestrado (26%) e doutorado (25%). Há menor incidência entre pós-doutorandas e professoras da educação básica, ambas com 5%, mas é interessante notar que 14% das filósofas experimentaram essa desqualificação como professoras do ensino superior.

O Gráfico 14 exibe as instituições mencionadas com mais frequência por filósofas que relataram ter sofrido desqualificação intelectual ou moral durante avaliações. A UFRJ aparece com a maior frequência (41%) e em é um percentual muito alto em relação às demais instituições. A USP é a segunda instituição mais mencionada (14%). As demais instituições mencionadas (todas com 9%) são UFAL, UFPB, UFPR, UFSC e SEE-DF.
8. Discriminação
Adentramos agora os tipos de violêncria criminalizados por lei. O artigo 1o, I, da Lei 12.288/2010 define discriminação do seguinte modo:
É toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em sexo, gênero, idade, orientação sexual, deficiência, crença religiosa, convicção filosófica ou política, raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada.
Exemplos de discriminação relacionada à violência de gênero são: pagar salário menor no exercício das mesmas funções; não contratar, não promover ou exonerar alguém devido ao seu gênero; ofender, agredir, isolar, preterir ou excluir alguém devido ao seu gênero (cf. Brasil, 2023, p. 20). O artigo 20 da Lei 9.459/2000 prevê pena de um a três anos de reclusão e multa para atos de discriminação.

O Gráfico 15 apresenta a frequência com que filósofas relataram ter sofrido discriminação. Mais uma vez identificamos a dupla tendência de respostas que identificam a violência como ocasional (39%) e como frequente (33%). A dupla tendência também se revela em outra oposição: 11% indicaram ter sofrido um caso isolado e outros 11% regularmente (uma vez por ano). 6% das respondentes indicaram ter sofrido discriminação reiteradamente (uma vez a cada três anos).

O Gráfico 16 mostra em que momentos da trajetória acadêmica e profissional as filósofas relatam ter sofrido discriminação e revela que ela ocorre em todos os momentos. A percentagem de discriminação ocorrida a pós-doutorandas (7%) e professoras da educação básica (10%) é menor entre as respostas. Nota-se uma maioria de casos entre doutorandas (27%), seguidos de perto por professoras do ensino superior (23%) e por mestrandas (20%). É interessante notar a menor incidência entre graduandas (13%), o que contrasta a discriminação com a aproriação do discurso que foi tão frequente nesse momento da carreira.

Várias instituições foram mencionadas apenas uma vez como local de ocorrência de discriminação. Como essas menções únicas foram suprimidas do relatório (vide a seção “Procedimento”), temos apenas 3 instituições com mais de uma menção – UFRJ, USP e UFRGS – indicadas no Gráfico 17, todas elas mencionadas igual número de vezes.
9. Assédio Moral
Ainda não há uma lei que rege o assédio moral no Brasil e a sua prática tem sido punida com base em jurisprudência baseada em certos artigos do Código Civil e do Código Penal. Segundo a Controladoria Geral da União, “o assédio moral consiste na violação da dignidade ou integridade psíquica ou física de outra pessoa por meio de conduta abusiva”. (Brasil, 2023, p. 7). Situações de assédio moral são descritas como humilhação, constrangimento, intimidação, agressividade e menosprezo. Exemplos de assédio moral são privar a pessoa de seus instrumentos de trabalho, sonegar informações ou não atribuir tarefas a ela provocando sua incompetência, ou ainda atribuir quantidade desproporcional de tarefas, incumbir alguém de tarefas distintas de suas atribuições, exigir sua execução urgente ou pressionar para que o profissional não exerça seus direitos trabalhistas. É de se notar que casos de silenciamento, apropriação do discurso, desqualificação moral ou intelectual e desqualificação em avaliações podem se enquadrar na categoria de assédio moral.

O Gráfico 18 apresenta dados sobre a frequência do assédio moral sofrido por mulheres na Filosofia. A gravidade do assédio justifica que a maioria das respostas (58%) sejam de um caso isolado (31%) ou ocasional (27%). O alto número de respostas que caracterizam o assédio moral como frequente (27%) – o que de novo indica dupla tendência – pode se referir à repetição da violência de um mesmo agressor. Essa pode também ser a interpretação das respostas que descrevem o assédio moral como algo reiterado (9%) ou de ocorrência regular (6%).

O Gráfico 19 apresenta a distribuição do assédio moral sofrido por filósofas ao longo das diferentes etapas da carreira acadêmica e profissional. A maior incidência no mestrado (27%), seguida pelo doutorado (23%) e logo depois por professoras do ensino superior (20%). Menos respostas indicaram assédio moral quando graduandas e professoras da educação básica, 12% cada, e finalmente quando pós-doutorandas (6%).

O Gráfico 20 mostra quais instituições de ensino superior foram mencionadas com maior frequência em relatos de assédio moral sofrido por filósofas, considerando apenas as universidades citadas duas vezes ou mais. A UFRJ aparece como a instituição mais mencionada, com 23% dos relatos. A USP é a segunda mais citada, com 17%. UFF, UERJ, UFPR, UFBA e UFSC dividem a terceira colocação com 12% cada.
10. Assédio sexual
O artigo 216-A do Código Penal Brasileiro, com inclusão da Lei 10.224/2001, define assédio sexual como:
Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena: detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
O assédio sexual é, portanto, crime quando há hierarquia entre um agressor com poder superior e uma vítima que pode ser constrangida por esse poder. Assédio sexual sem hierarquia não é crime de assédio sexual, mas pode configurar crime de importunação sexual (ver abaixo). Exemplos de práticas de assédio sexual incluem conversas sobre sexo, piadas e insinuações de cunho sexual, comentários sobre a aparência física, cantadas e flertes não correspondidos, convites impertinentes, promessas ou chantagem em troca de favores sexuais e contato físico não consentido.

O Gráfico 21 apresenta a frequência do assédio sexual sofrido por filósofas. A maioria expressiva (76%) relata ter sido vítima apenas uma vez ou de duas a cinco vezes em sua carreira (ocasionalmente). Mais uma vez, 18% de respostas que acusam incidência frequente podem estar se referindo à atitude repetida de um mesmo assediador. É baixo o índice de respostas de assédio sexual como reiterado ou regular: 3% cada.

O Gráfico 22 apresenta a distribuição dos casos de assédio sexual sofridos por filósofas ao longo de suas carreiras acadêmicas e profissionais e sua informação mais impactante é a maioria das ocorrências (64%) sendo relatadas no início da carreira: 41% dos relatos foram sofridos por graduandas e 23% por mestrandas. Compare-se, por exemplo, com uma distribuição do assédio moral mais prevalente no mestrado, doutorado e entre professoras do ensino superior. Esse número pode estar relacionado à associação entre juventude e desejo sexual. O assédio sexual foi relatado como ocorrendo a doutorandas em 14% das respostas. Ele foi relatado em mesmo depois de mulheres alcançarem posições mais altas na carreira, pois aparece em 12% das respostas como ocorrido a professoras do ensino superior. 6% relataram assédio sexual enquanto professoras da educação básica e 4% enquanto pós-doutorandas.

O Gráfico 23 apresenta as instituições de ensino superior mais mencionadas em casos de assédio sexual sofrido por filósofas. A UFRJ lidera as menções de assédio sexual, com 28% dos relatos. A UERJ também aparece com destaque (16%), seguida da USP e da UNB (ambas com 12%), e da UFMG, UFF, UFPB e UFPR (todas com 8%).
11. Violência sexual
O último tipo de violência de gênero inclui os crimes sexuais de importunação e estupro. O artigo 215-A do Código Penal Brasileiro, segundo a inclusão da Lei 13.718/2018, define importunação sexual como:
Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. Pena: reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.
Já o estupro é definido pelo artigo 213 do mesmo Código com redação dada pela Lei 12.015/2019 como:
Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena: reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Assim como a importunação, há várias cláusulas de agravante de estupro.

É de se esperar que a violência sexual seja a forma mais rara de violência de gênero, por ser a mais grave. 88% das respostas confirmam isso (38% como caso isolado e 50% como duas a cinco vezes na carreira). Mais uma vez surpreende a resposta “frequentemente” (mais de duas vezes por ano) com 12%, que pode ser a recorrência do crime por um único perpetrador.

O Gráfico 25 apresenta o percentual de mulheres filósofas que sofreram violência sexual em diferentes momentos de suas carreiras acadêmicas e profissionais. 38% relataram o fato ocorrido durante a graduação e 46% durante a formação na pós-graduação (23% no mestrado e 23% no doutorado). 8% das respostas relataram o ocorrido enquanto eram pós-doutoranda e outros 8% como professora do ensino superior.
Não foi preciso elaborar um gráfico com as instituições mencionadas como local de violência sexual porque a grande maioria delas foi mencionada apenas uma vez. Só a UFRJ foi mencionada mais de uma vez.
12. Conclusão
As respostas das filósofas descrevem a comunidade acadêmica como um ambiente hostil. É possível que filósofas com essa experiência tenham tido maior motivação do que as demais para responder à enquete, embora se note a ocorrência de 8% de respondentes que nunca sofreram violência. O silenciamento, sofrido por 45% das respondentes, é a mais corriqueira das violências de gênero, ocorrendo ao longo de toda a carreira. A apropriação do discurso, sofrida por 29% das respondentes, ocorre mais a graduandas, o que sugere que se deve prestar mais atenção aos ambientes de sala de aula. A desqualificação moral ou intelectual, sofrida por 33% das respondentes, e o assédio sexual, sofrido por 36% das respondentes, são mais frequente entre graduandas e mestrandas. É plausível supor que essas violências estejam conectadas à juventude da vítima. A desqualificação em avaliação, sofrida por 36% das respondentes, é típica dos estágios de formação: graduação, mestrado e doutorado. O assédio moral, sofrido por 37% das respondentes, ocorre mais no mestrado e no doutorado, mas também entre professoras do ensino superior. Finalmente a violência sexual, a forma mais extrema de violência de gênero, foi relatada por 10% das participantes, ocorrendo mais entre graduandas, mestrandas e doutorandas.
Na análise de várias dessas violências detectou-se uma “dupla tendência” na resposta sobre frequência, ou seja, as mesmas violências eram descritas como raras e frequentes. É possível que haja fatores semânticos envolvidos nesse resultado, por exemplo, que o conceito da violência indicada não estava claro à respondente ou que um caso de violência seja contabilizado a partir das várias incidências do mesmo agressor. Isso pode indicar que o vocabulário da tipificação da violência de gênero não é usual para a comunidade filosófica ou que não haja consenso sobre como descrever uma violência. Neste caso é desejável um debate mais amplo nessa comunidade para o estabelecimento conceitual do léxico da violência de gênero.
Referências
BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União, 31 dez. 1940.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 24 mar. 2025.
BRASIL. Guia Lilás: Orientações para prevenção e tratamentoao assédio moral e sexual e à discriminação no Governo Federal. Brasília: Controladoria Geral da União, 2023.
Agradecimento
A Constança Barahona, pelo seu inestimável apoio como colaboradora administrativa da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas. A Juliana Aggio, Mitieli Seixas da Silva e Flora Araújo Costa por seus comentários a uma versão anterior deste relatório.