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A naturalização do mal e a necessidade do pecado contra o livre-arbítrio da vontade

ANA FLÁVIA SANTOS DE SOUZA (USP)

Dissertação de mestrado

Orientador: Moacyr Ayres Novaes Filho

Defesa: 19/11/2020


Public domain, disponível em https://www.metmuseum.org/art/collection/search/469827


O problema fundamental do De libero arbitrio, um diálogo do final do século IV, é, como reitera mais tarde Agostinho em suas Retractationum, a busca pela a origem do mal. No entanto, na medida em que os interlocutores progridem na argumentação, vemos a vontade humana assumir o lugar de escopo da investigação ao ser descoberta como dinamismo interno a partir do qual o homem é capaz de se furtar ao bem supremo e se converter aos bens inferiores.


Ora, uma vez descoberta a vontade e seu poder de se afastar do bem supremo, surge a necessidade de compreender se esse movimento de afastamento da alma humana, livre, boa e dada a nós por Deus, é necessário ou voluntário. Com efeito, é importante informar que a mudança quanto ao escopo para a qual chamamos a atenção sinaliza uma mudança filosófica profunda da obra De libero arbitrio, a partir da qual a questão central de nosso trabalho de dissertação será colocada, e em decorrência da qual se torna filosoficamente necessário perguntar: que relação a busca pela compreensão da origem do mal guarda com a vontade humana e seu movimento em direção aos bens inferiores? Por que se mover em direção aos bens mutáveis está associado à busca agostiniana pela compreensão do mal? Compreender essas questões exige a compreensão das transformações filosóficas operadas por Agostinho na obra.


É difícil traduzir em poucas palavras o movimento pelo qual Agostinho transforma a investigação acerca da origem do mal em investigação sobre a vontade e o livre-arbítrio humano. Por ora, diremos apenas que o movimento teórico pelo qual Agostinho opera essa transformação implica a descoberta filosófica de que nenhuma outra realidade é capaz de levar a alma humana a se afastar do bem supremo e a se mover em direção aos bens inferiores a não ser a própria vontade. Trata-se, portanto, da descoberta da vontade como causa do mal, isto é, da descoberta do homem como autor no mal.


Ao projetar a busca do mal para dentro de si, Agostinho transforma todo o campo argumentativo do De libero arbitrio. Transformação que justifica a emergência de questões como as presentes no início do livro terceiro: de onde vem que a vontade humana seja a causa do mal? O movimento pelo qual a vontade faz o mal é necessário ou voluntário? Ora, só é filosoficamente pertinente perguntar se o movimento pelo qual a vontade livre e boa se furta ao bem comum e se converte aos mutáveis é voluntário ou necessário quando o mal é descoberto não como simples ausência de ser, nem como algo que tem origem na ação propriamente dita, mas como renúncia ao bem supremo pela vontade humana.


Assim que embora o De libero arbitrio esteja comprometido com a racionalização da ideia de uma vontade naturalmente boa e, que todavia, comporta a causa do mal, bem como com todo um aparato teórico conceitual que lhe permita afirmá-la como tal, nosso propósito primeiro é investigar apenas dois dos argumentos que compõem o conjunto das teses apresentadas pelos interlocutores a fim de encontrar a origem do mal e, ao mesmo tempo, salvaguardar a bondade divina.


Nosso estudo gira, portanto, em torno das interpelações necessitaristas levantadas por Evódio contra o livre-arbítrio da vontade humana em III, I – IV do De libero arbitrio. Trata-se de compreender, em primeiro lugar, se é possível salvaguardar o livre-arbítrio da vontade de uma suposta tendência natural para o mal, caso contrário, a origem do mal seria remetida diretamente para Deus. E, em segundo lugar, de compreender se é possível conciliar o livre-arbítrio da vontade humana com certa necessidade imposta pela presciência divina, visto que se não for, será preciso admitir que fazemos o mal constrangidos pelo conhecimento divino, o que poderia nos levar à negação da bondade divina e do próprio livre-arbítrio da vontade.


Por fim, trata-se de compreender por um lado, de que modo não é contraditório e incompatível o fato de o livre-arbítrio da vontade ser fruto da iniciativa divina e o mal não ser, consequentemente, natural e, por outro, de que modo não é contraditório e incompatível o fato de Deus conhecer de antemão todos os eventos futuros e ainda assim o livre-arbítrio ser a causa do mal, sem que o seja impelido pela presciência divina. Trata-se, consequentemente, de compreender como é possível que Agostinho no De libero arbitrio, III, afirme a bondade e a presciência divina e, ao mesmo tempo, a bondade natural da vontade humana e a voluntariedade do mal. Dessa forma, nossa análise pretende tornar claro os prejuízos gerados quando se defende a naturalização e a necessidade do mal, pois, além de negar à vontade o livre-arbítrio e suprimir a responsabilidade humana, transferir-se-ia imediatamente para Deus sua origem, de modo que nem Deus seria presciente, nem o homem livre.


Referências bibliográficas


AUGUSTINUS. De libero arbitrio. Cura et studio W. M. Green. Corpus christianorum, series latina, 29. Turnholt, Brepols, 1970.

AUGUSTINUS. Retractationum libri duo. Patrologia Latina Tomus 32. Turnhout: Brepols. [1841-1849] 1982-1993.

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