Carla Maria Peixoto Pereira
Doutoranda em Desenvolvimento Socioambiental PPGDSTU/NAEA da Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora da Escola Superior da Amazônia. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa (CNPq) MinAmazonia - Mineração e Desenvolvimento Regional na Amazônia.
Loiane Prado Verbicaro
Professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito.
O tema de hoje refere-se à perversa correlação entre a pandemia no Brasil, a extrema pobreza e a desigualdade social, a partir da análise do apartheid sanitário, que faz com que as condições de higiene sejam um luxo não acessível a maior parte da população. Antes de analisarmos a questão do saneamento básico, importante tecer algumas observações sobre aspectos da nossa estrutura econômica e social. A economia brasileira é a maior da América Latina e uma das dez maiores do mundo. Mas ao longo da sua história desperdiçou inúmeras oportunidades de implementar uma agenda efetivamente igualitária e que, ao mesmo tempo, permitisse a criação de uma infraestrutura sanitária adequada. A realidade é que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, “com uma pobreza totalmente evitável que reduz a expectativa e a qualidade de vida de dezenas de milhões de pessoas.” O desenvolvimento econômico brasileiro foi historicamente perverso porque aumentou as desigualdades estruturais e sociais (SAAD FILHO; MORAIS, 2018, p. 19, 20).
Nos intervalos de uma república oligárquica, uma ditadura populista de direita e uma ditadura militar, democracias foram fragilmente concebidas. Na década de 1980, a promessa democrática e inclusiva consolidou-se na Constituição de 1988, estruturada sob a base de um Estado de bem-estar social. No entanto, a realização democrática foi limitada, na medida em que o avanço da cidadania ocorreu ao lado da reprodução de uma sub-cidadania e de expressivos privilégios econômicos. A transição para o neoliberalismo, que constituiu um processo multissetorial de liberalização, aprofundou a exclusão, fomentou a financeirização do capitalismo e a precarização das condições de vida e trabalho, sobretudo por desconsiderar progressivamente as condições humanas de vida, o acesso democrático à política e limitar o espaço para a distribuição equânime de renda e riqueza baseada na inclusão social e na cidadania. A partir dessa breve introdução, passemos à nossa análise.
Começamos fazendo referência à obra literária “O Cortiço”, do autor maranhense Aluísio Azevedo, lançada em 1890. Na obra, o escritor conta a história de João Romão, um comerciante cujo maior objetivo era ascender na sociedade carioca. Dono de uma taverna e uma pedreira, João também era o proprietário de um cortiço, que não detinha qualquer acesso à água potável ou esgotamento sanitário por parte de seus habitantes, que eram, em sua maioria, seus empregados na pedreira e clientes na taverna. Apenas quando o cortiço sofreu um grande incêndio, João resolveu reformá-lo para que se tornasse a vila João Romão, tendo sido acrescentados para tal, com grande festa, seis vasos sanitários e torneiras de água, bem como construídos três banheiros para serem utilizados coletivamente. Como mencionado, esta curta síntese integra um relato literário do final do século XIX. No entanto, ainda que se tenham registros históricos de água encanada até mesmo na Roma antiga, não é desafio algum identificar, em nossas cidades contemporâneas brasileiras, moradias tais como as descritas por Azevedo há mais de 100 anos: sem serviços de acesso à água potável e de coleta e tratamento dos esgotos. Há no Brasil um déficit sanitário, em descompasso com as disposições normativas da lei do saneamento, que prevê um conjunto dos serviços, instalações operacionais de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais como infraestruturas necessárias à população e condição para a implementação do direito à saúde.
O Instituto Trata Brasil apontou que quase 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada e quase 100 milhões de brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto, o que significa um impacto negativo na saúde coletiva. Apesar dos dados que demonstram que o investimento em saneamento é fundamental à saúde pública ao reduzir o índice de mortalidade (principalmente a infantil) e a sobrecarga do sistema do saúde, ademais de ser benéfico para o turismo, preservar recursos hídricos, valorizar bens imóveis, entre outras vantagens advindas de um sistema sanitário pleno, as políticas públicas no Brasil, reiteradamente, não priorizam esse investimento em razão dos altos custos e da aposta em direcionamentos de gastos com perspectivas mais eleitoreiras. Momentos epidêmicos acentuam os nossos problemas e mazelas, aprofundando-os. Nesse sentido, a pandemia do novo coronavírus tem lançado novas luzes sobre o imenso déficit de saneamento no país. Tem-se, há muito, uma crise sanitária: vive-se no Brasil de 2020 tal como no cortiço de Romão de 1890. Foi necessária a propagação mundial de um novo vírus com alta taxa de mortalidade, o qual não se tem vacina ou protocolo de tratamento consolidado, com alto grau de transmissibilidade e cujas principais estratégias de combate, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, são lavar as mãos com água limpa e sabão e se manter em casa (e aqui, se tem como premissa um ambiente hígido), para que percebamos a realidade da grande maioria dos 210 milhões de brasileiros, de como (sobre)vivem.
Importante a reflexão segundo a qual este déficit sanitário pode se traduzir enquanto um instrumento de necropolítica estatal e do capital, que delineiam a morte social daqueles que não têm condições financeiras de habitar locais beneficiados pelas intervenções urbanas de saneamento, demonstrando que o assunto é bem mais complexo do que se considera à primeira vista. Logo, percebe-se que a questão sanitária e seu déficit também engloba aspectos ambientais, sociais, econômicos e políticos, que ingressam no campo de uma análise mais abrangente e demandam uma leitura sistêmica interdisciplinar do espaço urbano, cujo valor de mercado dado pelo capital avilta, rotineiramente, a vida de todos. A forma de produção capitalista do espaço urbano, já há tanto estabelecida, que passa a ter seus resultados desiguais vistos como normalidade, se torna ainda mais cruel quando estamos diante de uma pandemia que, confrontada com a falta de acesso de serviços básicos sanitários, acena à profunda desigualdade das nossas estruturas.
O problema da urbanização segregadora e excludente não é recente. Engels denunciava, no início do capitalismo industrial, as consequências deste sistema econômico na cidade, que se tornam mais avassaladoras por conta da globalização e da homogeneização do espaço. O Brasil, sendo periferia do mundo com seu capitalismo tardio, se rendeu ao ideal neoliberal de que serviços básicos devem ser fornecidos pela iniciativa privada, o que tem levado a uma discussão já bem avançada de que o saneamento básico deve ser provido por consórcios de empresas privadas, o que provavelmente intensificará a atual crise sanitária, uma vez que nem todos os municípios brasileiros apresentam potencial de lucro e, consequentemente, interesse para os consórcios. Isso porque nem sempre a política necessária é também lucrativa, o que pode conduzir à persistência das nossas assimetrias.
Neste cenário, falar de crise sanitária no espaço urbano, particularmente durante uma pandemia tão grave, é também falar de déficit de direito à cidade, onde existem muitos cidadãos que nem sempre conseguem exercer sua cidadania por conta do aviltamento dos seus direitos fundamentais sanitários. A escolha deste modelo de desenvolvimento, traduzida na produção capitalista do espaço e que prioriza o viés econômico e tende a colocar questões sociais e ambientais (como a sanitária) em plano secundário, afeta a liberdade da cidade e sua relação com as ações de enfrentamento à pandemia, pois que não é possível que se dissocie o tipo de pessoa que cada um deseja ser do tipo de cidade que cada um almeja habitar. Esta relação se impõe porque o homem é diretamente influenciado pelos espaços em que circula e que o ajudam a definir as suas possibilidades de vida, sendo determinante, para isso, a existência de um ambiente urbano hígido universal, que está em completo desacordo com a nossa realidade.
Desta forma, tal como a concepção original de Henry Lefebvre, o direito à cidade continua se afirmando como apelo e como exigência, sendo uma problematização urgente em relação aos espaços urbanos nesses tempos de pandemia. O fato é que momentos de crise testam nossas escolhas e nosso projeto de vida coletiva e dependendo da nossa capacidade de reinvenção e de recomeço, podemos perpetuar o trágico da realidade, que numeraliza e banaliza a morte, ou construir novos caminhos. Que sejamos capazes de transformar o relato de Aluísio Azevedo no “O Cortiço” em distopia impensável nos nossos novos tempos.
Referências
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Klick Editora, 1997.
ENGELS, Friedrich. Sobre a questão da moradia. São Paulo: Boitempo, 2015.
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Boitempo Editorial, Carta Maior, 2013.
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2014.
INSTITUTO TRATA BRASIL. Principais estatísticas sobre saneamento no Brasi. Disponível em http://www.tratabrasil.org.br/saneamento/principais-estatisticas. Acesso em 18 abr. 2020.
LEFEBVRE, Henri et al. Du contrat de citoyenneté. Paris: Syllepse et Périscope, 1990.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 3ª ed. São Paulo: Centauro, 2001.Marx
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Revista Artes & Ensaios, número 32, dezembro/2016.
SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: Neoliberalismo versus Democracia. São Paulo: Boitempo, 2018.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
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