Veja o vídeo aqui.
Escutas Feministas. Tenho perguntas para as quais eu não tenho respostas.
Quem disse que temos que escutar?
Escutar o que e para que? Escutar é dar soluções? Para ouvir e levar adiante? Para aglomerar falas? Demandas? Pedidos? Ordens? Desabafos? Para armazenar falas? Para fazer ecoar falas que nós escutamos direito? Escutar para elaborar? Conseguimos escutar para elaborar?
Quais são os silêncios e/ou barulhos posteriores às escutas? O silêncio? E se escuta nos calar, nos sobrecarregando?
Talvez escutar seja importante também para escapar, para transpor, para ir a outros lugares?
Escutas feministas? Por que feministas? A escuta é feminista quando se dá através de ouvidos de mulheres?
Quem escuta muito pode ser surdo para os próprios barulhos?
Escutar? Sim. Talvez. A depender. Escutar o que?
Escutar, desde que escutar não signifique deixar de ir adiante.
São muitas histórias não escutadas. A história dos povos negros e indígenas é uma das maiores gravidades da brutalidade das surdezes de nossa história. Também por causa disso, hoje é o dia da consciência negra. Um dia que não pode ser apenas um dia, mas que já não pode deixar de ter esse dia como um dia histórico entre nós. E quem venham mais dias para gritar contra tanta surdez, ignorância e protecionismos políticos.
A respeito de Escutas Feministas dentro da Universidade, hoje também é um dia importante (creio que também seja o trajeto proveniente do mesmo caminho de luta de negras e negros contra a opressão). Há muito a ser pensando a respeito de Escutas Feministas num lugar onde, tradicionalmente, alguns falam, outros escutam, e entre quem fala, não necessariamente há escuta. E por parte de quem escuta, nem sempre há compreensão. Problemas da educação que cotidianamente precisamos enfrentar. Muitas vezes, somos e/ou estamos entre bocas falantes e ouvidos tapados. Muitas vezes são bocas que pedem e ouvidos que negam. Ainda assim, segue a construção do conhecimento. Segue ou já foi interceptado onde apenas um tipo de conhecimento é reconhecido? Segue a partilha do conhecimento? A saber. Por vezes, no máximo lemos (a depender do nosso escasso tempo, e da pontuação da revista na qual se deu a publicação do artigo científico, filosófico, "verdadeiro" do intelectual, se ele for renomado; se for uma leitura que “compensa”). Nossas surdezes acompanham o nível de nossas mentalidades. Nossa escuta também funciona sob o aval da convenção. É recorrente ouvir apenas as autoridades e, para ser ouvido, tornar-se uma autoridade. Também somos ouvidos que selecionam: quem escreveu? Qual a titulação? Qual a pontuação? Qual a fama? Qual o gênero? Qual a raça? Imitamos o hábito da seleção, da segregação. Nosso preconceito é gritante tanto quanto grita a fragilidade de nossa democracia.
E para ser escutada? O que fazer? Quer falar para ser escutada? Imite a voz e a postura de um homem! Use da mesma razão. Imite tudo o que já está posto como verdade e eficiência. Este funcionamento ainda se dá, e as enferrujadas dobradiças não nos deixam escutar o barulho estrondoso que fazemos ao tomarmos a imitação um recurso para o feminismo. Em meio a isso, como parte disso, mas também contra isso, nos complicadíssimos processos pelos quais se arriscam todas as novas construções, aqui na UFG, desde 2017, levamos adiante o projeto de extensão Escutas Feministas. Para novos aprendizados é indispensável estender, porque ao olharmos apenas para o que é próprio, corremos o risco de percorrer uma linha que costura o apego aos próprios limites. Necessitamos de um projeto de extensão, não necessariamente porque “lá fora” precisem de nós, mas ao menos porque precisamos abrir nossos ouvidos já tão surdos e que ainda insistem em ecoar os modos atordoantes e inférteis de lidar com os conhecimentos já consagrados, assumidos como “nossos” nas relações acadêmicas que perpetuamos.
A relevância de falar e escutar para fora é imensa. A respeito desta relevância, não é possível tratar neste momento. Que ao menos Paulo Freire seja lido e relido. É o mínimo. Mas escutar “lá fora”, para aprender, e quem sabe, conseguir ensinar, ainda é um movimento curto. O que não é cotidiano e cômodo é muito difícil ser mobilizado. Herdamos e sustentamos o pensamento elitista que acredita que se pode fazer sozinho e a partir da autorização de lados opostos: o lado de cima, sustentado pelos “a baixos”. Enquanto isso e por causa disso, mães, pais, empregadas e empregados sustentam com seus trabalhos nossa alimentação, vestimenta, transporte, limpeza do lar, enfim, sustentam algumas, muitas, senão todas as condições para a leitura, a escrita, o estudo, a pesquisa, o pensamento acadêmico. As intelectuais e os intelectuais pisam num solo bem fértil, embora por elas e eles mesmos muito desprezado ou até recusado. Pensamos só entre nós e a despeito de todas as demais e os demais que nos sustentam. E se alguns destes vieram para juntos de nós, não necessariamente os escutamos. De línguas outras sabemos das mais distantes. Se, para nós, quem é diferente pode ingressar, entre nós poucos conseguem permanecer e pertencer. Ainda assim, acredita-se que o conhecimento daqui é universalmente válido, mesmo sendo bem surdo. Mas quem, como eu, é filha de faxineira e de metalúrgico sabe muito bem que não é nada disso. Há sábios mais acessíveis em lugares bem distintos. O “lá fora” está aqui dentro, mas é ainda mais amplo.
Um imenso desafio pra nós é essa "estória" de extensão. Perguntas não nos faltam, e precisamos não nos ensurdecer para elas. Estender para onde? A partir do que? Estender o que é curto? Por que estender? E como? O que temos a ofertar? Temos escutas para receber o que poderão nos falar? Falam certo? Falam coisas interessantes? Falam coisas válidas? Não se tratam mais de “ignorantes” inaptos para o conhecimento “avançado” que aqui se faz? O que já dissemos e pensamos a respeito do “fora”? Escutamos nossas próprias palavras, pensamentos, preconceitos? Ou seguimos "ensurdecidas" para nossa surdez para quem nos sustenta? Podemos também dar seguimento às formas cada vez mais usuais (e cada vez mais em vias de serem institucionalizadas) de diminuir quem não é economicamente favorecido? Embora a esta altura do campeonato (no 7 X 0 cotidiano), já vimos onde os intelectuais foram colocados neste jogo. Passamos por isso em nosso cotidiano político. Mas não sei o quanto lidamos com isso. A lida é algo para quem não ignora.
De todo modo, Escutas Feministas se pretende projeto de extensão, nasceu a partir deste desejo. E para tanto está também enfrentando o imenso desafio de ser escutas internas das questões nem sempre escutadas dentro da Universidade e pela própria Universidade. Só enquanto aprendemos a nos escutar (e escutar as próprias surdezes e falas), podemos ser projeto de escutas. Não há antes e depois. O aprendizado não funciona neste tempo fracionado e dicotomizado, tal como alega ser o mercado e a produtividade, com suas promessas de soluções para cada coisa e para tudo. Então, precisamos enfrentar ao mesmo tempo o desafio de escutar-se e escutar. Qual a escuta suficiente é uma questão aberta. Quanto tempo precisaremos para escutar inclusive nossas brutalidades silenciadas, nossos posicionamentos e faltas de posicionamentos, nossos empacamentos, nossos elitismos e nossa reprodução de machismos? Se o feminismo é para todos (bell hocks), ainda temos muito a aprender sobre como ele está entre nós. Mas isso precisa se dar com o feminismo e a partir do feminismo. Isto, não por modismo, como insiste em afirmar quem quer nos diminuir (algo bem típico de clichês). O modismo passa, o feminismo nunca esteve de passagem. Feminismo não é grupinho de ajuda. E se o senso de coletividade é inegável ao feminismo, isso diz de problemas políticos/sociais e morais de uma sociedade exploratória.
É importante analisar os slogans para não sobrecarregar ainda mais as mulheres. O senso internacionalista, que historicamente compõe a história do feminismo, é estratégia de sobrevivência. Precisamos do feminismo fortalecido, porque tal como outras formas de lutas contra opressões das mais diversas, ele é salutar para todas e todos façamo-nos viver de um modo mais decente do que nos moldes que têm sido hegemônicos. Mas não vai dar pra voltar atrás e aceitar mais demandas, sob o viés da moralidade e das definições. Nós mulheres não temos o dever de escutar mais ou menos do que quaisquer outras pessoas. Não vai dar pra ser feminista consentindo a reprodução dos machismos, entre eles, todos os deveres a nós já imputados. E necessário a escuta do barulho da repetição. Ao feminismo é muito caro aquilo que se dá no gerúndio e de modo genuíno. O feminismo começou há muito tempo, está em muitos lugares, mas ainda está se dando. O acabado não nos pertence. O pacote pronto não é vendido e não aceitaríamos comprá-lo. O custo é outro: a coletividade, difícil de ser mantida em meio a tantos egos; porém ela precisa ser cuidada, preservada, ao invés de disfarçada sob qualquer semelhança com slogan tal como “fala que eu te escuto”. Se escutar se transformar em mais uma ordem, mais uma gaveta, mais uma moralidade para nós, escutar não será algo do feminismo, mas mais um machismo sob vestes femininas. Sobre como ser feminista e qual a forma mais correta, funcional e ideal? A Universidade também não sabe. Para essa história em construção, não há ignorantes nem sábios. Seguiremos enquanto tantas formas de opressão ainda se der entre nós e que não aceitemos mudar de lado, porque o opressor nunca prestou. Seguimos assim: talvez com muitos erros e equívocos, que só ao serem respeitosamente apontados, poderão ser repensados, porque esta história de arrogância, negação, grosseria e certezas, para tentar ganhar em detrimento de outrem, diminuindo a/o outra/o, é coisa de macho. Nós preferimos as construções, as gravidezes, os partos, as colaborações, as parcerias. Dessas dores pode brotar vida. Se preciso for, também sabemos e podemos abortar. Somos nós que temos a oportunidade de gerar ou de interromper. Sim, precisamos de todas e todos, mas para os nascimentos, inclusive, os nossos nascimentos, algo tão caro neste lugar de competições e destruições (não é à toa o grande número de adoecimentos diagnosticados ou não, assumidos ou não, tratados ou não, ou negados e camuflados; não é à toa o número de assédios, de brutalidades descaradas ou sob a tentativa de justificativas ou até de regulamentos).
Escutas feministas requer filtros. Nosso ouvido não pode ser pinico. Enquanto mulheres, não temos que escutar tudo o que vem e nem de qualquer modo. Nossos ouvidos não são funis por meio do qual escutaremos tudo, por nada, e em excesso. Não somos mais receptáculos e suportes de tudo o que vem. Já pudemos ser curadas deste tipo de exploração e isso se deu graças ao feminismo. Nossa escuta pode ser, finalmente, para quais são os nossos desejos, desejos de nascimentos. E, para tanto, escutar-se é indispensável. Não para movimentos individuais e isolados. Não para "Eus" inflados e carentes de razão e de obediências. Mas para saber o que se quer juntas, o que é possível fazermos juntas e se estamos buscando juntas, sem nos oprimir. Os “Eus” são perigosos, porque são obras dos outros. Feminismo não é vã reclamação e aglomerado de queixas. Se as fazemos é por estar faltando séria escuta. Somos bem-amadas, se nos amarmos, e somos artistas, se criarmos. E ainda podemos ter uma vantagem: nós podemos ir de mãos dadas, afinal, somos mulheres e temos a vantagem de, desde crianças, podermos andar de mãos dadas. Deixemos as correntes para seus inventores. Nós somos parte de quem quebrou a corrente, de pessoas que tiveram coragem de fugir do pelourinho, de pessoas que se recusaram a serem aprisionadas à cozinha, à casa e qualquer interioridade que submete. Somos de onde quisermos ser. Não somos meigas, nem estupidas; nem isso, nem aquilo. Temos ouvidos. Temos fala. Mas também podemos nos tornar surdas para as falas que tentem nos submeter. A fixidez das definições e das obrigações também são invenções de outros. Quem quer permanecer é quem tem algo a preservar. Nós temos a construir. Nós não saímos para carregar mais pesos. Precisar sofrer é uma demanda que disseram que nos pertence. Já escutamos demais essa história. Mas já rasgamos esses livros. Já abortamos essa exigência. E não ouviremos quem quer que seja que venha ditar “o que é”, e “como é”, e “como deve ser” o novo, cuja construção não é de hoje. Se há tradições a serem cuidadas, tradição alguma nos soterrará. Cuidamos somente até o ponto em que elas não nos sufoquem dentro dela. Nem cuidar é algo especificamente nosso. São muitas as inversões que não merecem mais ouvidos. Se estivermos sumindo, gritemos. Não temos patrões nem patroas; idealizadores, nem feitores, porque “o basta!” já começou a ser gritado e seguirá cada vez mais intenso, até que seja ainda mais escutado. O coro precisa aumentar e, por isso, o grito precisa ser para fora (e não contra nós mesmas), e precisa se dar a partir de muitas vozes, porque quem precisa do peso de alcançar algo sozinho, sofre muito. Não voltaremos mais e, para tanto, é importante estender o corpo todo e a alma, se ela não for, um peso a mais. Porque o que podemos quem sabe aceitar que temos é nosso poder de fazer nascer e de abortar. Que possamos assumir nossos poderes. Quando o corpo morrer, a alma que não pesa poderá ser levada adiante por outras que seguirão nos ouvindo, somente se nos estendermos. Trata-se de um grande movimento que não é individual ou de pequenos grupos. Antes de nós, muitas vieram, daqui de dentro e de lá de fora. Só por causa das escutas, elas seguem conosco. Se neste lugar da universidade cresceram e se fortaleceram os limites, é neste lugar que poderemos trazer o fora, para que ele seja mais universal; mas isso depende de quem escuta quais são os limites, não para adulá-los e fazê-los ainda mais fortes. A escuta não precisa se dar como receptáculo, mas pode ser para iniciar; pode ser condição para selecionar o que queremos e o que não queremos, e não nos demorar no que não queremos. Escuta pode ser passo adiante e não sala de recepção. Não sejamos surdas para o que se passa conosco. Que possamos aprender escutas para distintas linguagens, sinais e até silêncios, para saber dos assuntos, mas principalmente para alterá-los, conforme nos alterarmos. Se é necessário fazer e ouvir os gritos e os “bastas”, é salutar ter escutas para o que mobiliza tudo isso: os desejos. Feminismos desde sempre tem a ver com novas formas de pensamento e de vida, e para a saída de condições que tolhem. Se há queixas é para que elas deixem de se dar. Feminismo não traz a mesmice. Mas quem entre nós pode temer a diferença, se podemos ser gravidezes de nós mesmas? Ou somos o mesmo? Fica a pergunta.
Comments