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Alteridade e a ética da responsabilidade em tempos de pandemia



Suellen Lima de Brito

Aluna bolsista do Mestrado em Filosofia na Universidade Federal do Pará (UFPA). Integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito.


Loiane Prado Verbicaro

Professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito.

A pandemia tem nos permitido “um olhar no espelho” da nossa impotência, bem como das nossas mazelas e precariedades humanas; ou mesmo um autorretrato (autocompreensão) de quem somos enquanto indivíduos e coletividade; de quais são as nossas prioridades e valores; do sentido que atribuímos à nossa existência; das nossas vulnerabilidades e altivez frente à vida, aos seus dissabores e acontecimentos malsãos; do apreço e desapreço pelo ethos comunitário; da nossa frágil e altaneira empatia, compaixão, solidariedade e generosidade desinteressadas. Considerando que é na escassez e na fronteira do sombrio que os problemas éticos regressam com intensidade, refletiremos hoje sobre a alteridade e a ética da responsabilidade em tempos de pandemia, a partir do pensamento dos filósofos Emmanuel Levinás e Martin Buber.


Com a pandemia do novo coronavírus e sua crise sanitária, a sociedade teve que se reeducar de distintas maneiras para impedir o contágio da doença, além de passar a conviver com o isolamento social onde o contato físico é censurado e o medo como emoção política implementado. Diversas cidades do país, em maior ou menor grau, estão realizando medidas de proteção para o combate ao vírus e, segundos os especialistas e profissionais da saúde que estão na linha de frente do combate à doença, é praticamente unânime a recomendação sobre a importância do isolamento social e das medidas de higiene básicas, resultando também em campanhas para conscientização acerca do cuidado com a sua própria vida (biológica) e a vida do outro, em um pacto de coletividade e solidariedade.


Contudo, observa-se parte significativa da população desdenhando e mesmo descumprindo tais medidas de proteção, não porque não tenha alternativa – e são muitos nessa situação –, mas, em muitos casos, voluntariamente, talvez em razão de uma postura temerária e negacionista ao perigo do vírus que tem matado tantas pessoas no mundo; ou mesmo em razão da crença em fórmulas mágicas ou soluções messiânicas sem comprovação em estudos científicos; ou ainda por priorizar as razões de mercado, seguindo os arautos da racionalidade econômica que têm defendido que “pior que o medo da epidemia deve ser o medo do desemprego”, afinal, a engrenagem não pode parar, ainda que custe a vida de milhares de indivíduos. Nesse caso, a vida humana é instrumentalizada pelo mercado, minimizada e vista como o suprimento “descartável para que o processo de acumulação e concentração não pare”. Trata-se de um Estado suicidário, como aquele que flerta com a sua própria destruição (Safatle, 2020), constituindo essa realidade como um novo estágio nos modelos de gestão do neoliberalismo como sistema que maximiza a importância do mercado e dos imperativos de eficiência em detrimento do ser humano.


O pior é quando essas atitudes de negligência e descaso veem de líderes políticos a quem compete à condução responsável da nação de modo a proteger a vida como valor fulcral. É o que tem ocorrido no Brasil, em que o Presidente da República, reiteradamente, demonstra o seu pouco caso para com os riscos à vida provocados pelo novo coronavírus, ao enfatizar a necessidade de retorno às atividades econômicas e escolares, bem como criticar os governadores dos Estados que estabelecem medidas de isolamento social recomendadas por autoridades científicas. Em razão da condução negligente do Chefe do Executivo – tanto pelo seu discurso como por participar e promover aglomerações –, a Associação Brasileira de Juristas para a Democracia denunciou-o ao Tribunal Penal Internacional por crime contra a humanidade, considerando sua política de governo em descompasso à compreensão da importância da ciência e da ética da responsabilidade em tempos de crise pandêmica e humanitária. Ainda que se considere o impacto econômico e social provocado pela paralisação da atividade produtiva e comercial e que a vida também dependa da dinâmica de produção e comercialização para a geração de emprego e renda, a proteção imediata e incondicional à vida humana deve ser a prioridade sobre qualquer outro objetivo econômico ou político. Nenhum governante decente pode colocar a vida em risco para proteger o produto interno bruto (PIB). Só os torpes o fazem! Trata-se de um imperativo ético e humano que não se curva a qualquer consequencialismo, a cálculos de custo e benefício ou relativizações de quaisquer espécies.


Segundo Emmanuel Lévinas (1906–1995), a ética da responsabilidade direciona-se à compreensão de que somos responsáveis uns pelos outros, que a relação com o próximo, com o seu bem estar é de nossa inteira responsabilidade, em outras palavras, nossa responsabilidade com a vivência do outro é total, indeclinável e intransferível. À medida que negligenciamos o cuidado ao outro estamos – eticamente – agindo mal, em falta com a nossa posição de responsabilidade e boa vivência em relação ao outro. Portanto, toda relação pressupõe uma dimensão ética a partir da compreensão de que o outro é nossa responsabilidade. A partir disso e considerando o momento de crise sanitária com a pandemia do novo coronavírus, atos de descaso para com a saúde e o bem estar do outro, a partir da prioridade às razões de mercado, ferem a ética levinasiana e a noção de alteridade, pois ao negar os cuidados necessários próprios para com o outro, nega-se concomitantemente a responsabilidade que temos com aquela vivência, agindo de maneira egoísta ao banalizar sua existência. Nesse sentido, o nosso cuidado com o outro e com nós mesmos e a partir da nossa obediência às medidas de proteção, reavive a relação de alteridade da vivência ética. É o sentido humanista mais puro que se preocupa acima de tudo com a condição humana.


Por conseguinte, para Martin Buber (1878-1965), o diálogo e o respeito à vivência do outro é o que nos torna humanos e que nos permitirá uma boa vivência em sociedade. O mundo é duplo para o homem, ele vive em dualidades, entre duas relações: O Eu-Tu e o Eu-Isso como palavras-princípios. O Eu-Tu como uma relação dialógica, encontro entre dois parceiros mutualmente, em totalidade e o Eu-Isso como um relacionamento monológico, experiência, utilização ou uso. Essas palavras-princípios fazem parte da vida dos indivíduos, de suas relações, elas são “[…] duas intencionalidades dinâmicas que instauram uma direção entre dois pólos, entre duas consciências vividas” (Von Zuben, 2001, p. 28), ou seja, elas estão inseridas em nós, por isso o mundo é duplo para os homens, ele pode proferir as palavras-princípios na sua vida de acordo com a sua vivência, com a relação que ele quer estabelecer. O que tem ocorrido nesse momento de grave crise pandêmica é que os indivíduos são coisificados, tratados a partir de relações objetificantes do mundo do Isso, com o descaso perante a vida do outro, banalizando sua existência e transformando a morte em mera estatística. Pessoas mortas viram números. Mas perdemos vidas. Não números. Ademais, nesse sentido, importante registrar um profundo repúdio à fala do novo Ministro (empresário) da Saúde que, em um vídeo tratando de eventual necessidade de escolha, pelos médicos, entre a vida de um idoso e de um jovem, afirma que a decisão deveria ser pensada a partir do seu impacto financeiro (critério utilitário), acenando à uma inadmissível hierarquização do valor da vida e a uma profunda insensibilidade e despreparo para lidar com a dimensão ética da existência. E nesse ponto, resgatamos o pensamento de Buber que apresenta a potencialidade do respeito ao outro a partir da interação dialógica da relação Eu-Tu.

A atual crise que estamos vivendo é avassaladora, uma crise marcada pela tragédia de milhões de mortes e um inimigo invisível e impiedoso, com impactos assimétricos especialmente aos grupos mais vulneráveis. É um momento de ressignificação de muitos dos nossos valores e, em especial, a ideologia contemporânea do “eu primeiro”. (Badiou, 2020). Nessa ideologia, preocupações com o “bem comum” e com o outro em sua dimensão ética são substituídas por uma gramática individualista, com posturas apáticas, hedonistas e narcisistas, com o estímulo do “cada um por si” e a identificação da felicidade a partir do consumo, como argumenta Lipovetsky (2015), em “O Império do Espetáculo e do Divertimento”, por meio de um processo de individualização e atomização das relações sociais, em detrimento da alteridade, da solidariedade e de projetos coletivos. Vê-se o desaparecimento do cuidado com o outro diante da exaltação e da ditadura do eu como subjetivação que nega o comum ou preocupações para além daquelas inerentes ao próprio desempenho, à produtividade e à competitividade.

Diante do padecimento do comum, do valor da alteridade e da ética da responsabilidade e do cuidado com o outro a partir da relação Eu-Tu, necessitamos fazer um trabalho de resgate e de construção de um projeto de humanidade e de uma generosa solidariedade internacional (frente à persistente tentação do entrincheiramento egoístico de nacionalismos que se renovam na história), nos quais sejamos responsáveis uns pelos outros. É dessa missão que se encarregam as ideias de Levinás e Buber, ao reagirem à descartabilidade humana, à ênfase à objetificação, instrumentalização e minimização da vida conduzida pela racionalidade econômica, para demonstrar o quanto somos ligados uns aos outros, do quanto precisamos de uma vivência dialógica baseada na alteridade e na responsabilidade recíproca e do quanto necessitamos viver bem em uma relação ética saudável, afinal, “somos olas del mismo mar, hojas del mismo árbol, flores del mismo jardín”.

Referências

BADIOU, Alain. La situación epidémica. In: Sopa de Wuhan: Pensamiento Contemporáneo en Tiempos de Pandemias. Buenos Aires: Pablo Amadeu Editor. Editorial ASPO, 2020.

BONAMIGO, Gilmar Francisco. O Problema do Humano em Emmanuel Lévinas. Revista “O que nos faz pensar”. Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC- Rio, v. 25, n. 38, p. 1-21, 2016.

BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001.

LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: Ensaios Sobre a Alteridade. Petrópolis: RJ: Vozes, 1997.

LÉVINAS, Emmanuel. Ética e infinito. Lisboa: Edições 70, 1998.

LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petropólis: Vozes, 1993.

LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Espetáculo e do Divertimento. In: LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. a Estetização do Mundo: Viver na Era do Capitalismo Artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

RIBEIRO, Martins Luciane. A Subjetividade e o outro: ética da responsabilidade em Emmanuel Levinás. São Paulo: Ideias & Letras, 2015.

SAFATLE, Vladimir. Bem-vindo ao Estado Suicidário. In: O Jornal de Todos os Brasis. Publicado na Edição de 25 de março de 2020.

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