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Ensinando coisas dolorosas em um mundo injusto

Este é um post convidado, escrito por Audrey Yap, Professora do Departamento de Filosofia da Universidade de Victoria, sobre como e se você deve incorporar material sobre o Covid-19 em suas aulas.


(Originalmente publicado em The Philosophers Cocoon.

A tradutora experimenta, no que se segue, usar o feminino como “pronome neutro”.)


Nesse momento particular, quando muitas professoras estão em transição ou se preparando para fazer a transição para diferentes tipos de instrução em meio a uma pandemia global, muitas de nós se impressionarão com a importância de boa parte do material com o qual lidamos profissionalmente. Muitas professoras estão ponderando o quanto querem incluir material relevante sobre o COVID-19 em suas aulas, ou ao menos começam a reconhecer até que ponto o material com o qual já trabalham tem implicações para nosso pensamento sobre a situação atual. Com relação à pergunta anterior, Sean Valles (Michigan State), que trabalha com filosofia e saúde pública, escreveu um post extremamente útil no Facebook e deu uma entrevista significativa, disponível no podcast Sci Phi. É provável, entretanto, que mesmo aquelas que não contemplem explicitamente conteúdos sobre saúde pública e pandemias possam achar que seus cursos de filosofia da ciência, filosofia política ou cursos de teoria dos valores eventualmente se se conectem com o tema.

Essa situação, entretanto, não é tão nova assim, principalmente para muitas filósofas que trabalham sobre temas como opressão. Muitas dessas acadêmicas, incluindo (certamente não de forma restrita) filósofas feministas, da raça, da deficiência [disability] e que trabalham com o tema da descolonização, há anos vêm conversado com as estudantes sobre assuntos que são ao mesmo tempo dolorosos e diretamente conectados às suas circunstâncias, suas vidas. Quando ensinamos sobre violência de gênero em turmas de graduação, por exemplo, é quase certo que estamos conversando com uma audiência na qual há vítimas de violência de gênero e talvez mesmo algumas agressoras. Levando isso em conta, este post pretende oferecer algumas considerações que são úteis para mim e para outras filósofas feministas quando ensinamos sobre temas potencialmente dolorosos. Como a violência de gênero é uma das minhas áreas de pesquisa, pensei em compartilhar algumas das coisas que tento ter em mente quando a discuto na sala de aula.

1. Todas as suas estudantes serão impactados de maneiras diferentes. Você provavelmente não será capaz de antecipar todas elas. Por isso, tente evitar fazer de qualquer pessoa ou grupo, de saída, um vilão. Suponha, e convide as estudantes a supor com você, que o grupo pode conter pessoas que sofreram e também pessoas que fizeram sofrer. Algumas dentre aquelas que fazem ou fizeram outras sofrer podem até perceber isso por si mesmas no curso de suas discussões. Podemos também reconhecer explicitamente que nenhuma das duas categorias forma um grupo homogêneo e que frequentemente existem pessoas que se enquadram em ambas.

2. Estabeleça explicitamente com o grupo práticas de correção mútua, sobre como agir se alguém disser algo problemático, ou sobre como discordar umas das outras acerca de um assunto delicado. Deixe claro que você está entre as pessoas que podem ser corrigidas ou das quais se pode discordar. Algumas professoras expressam isso em termos de paciência umas com as outras e em termos de nos dar a chance de revisar e repensar nossos próprios vieses, perspectivas e preconceitos. Isso pode estar incluído no seu programa de curso, por exemplo. Às vezes, digo às estudantes que se eu usar um termo inapropriado ou apresentar um problema de maneiras que elas consideram problemáticas, eu apreciaria muito se me sugerissem um termo ou enquadramento mais adequado – seja pessoalmente ou mais tarde por e-mail. Algumas estudantes já fizeram isso por mim, o que achei extremamente útil.

3. Tenha cuidado com discussões não-moderadas, como discussões em pequenos grupos. O que para uma pessoa parece um cenário abstrato pode muito bem ser a vivência de outra pessoa. Mesmo especulações filosóficas bem-intencionadas sobre um tal cenário podem ser experimentadas como profundamente nocivas. Considere, por exemplo, o que algumas filósofas da deficiência [disability] dizem sobre sua experiência em cursos de filosofia nos quais o assunto “deficiência” surge. Você precisará, então, ter uma boa noção das habilidades necessárias para a discussão em seu grupo, incluindo o compartilhamento de um vocabulário. E, provavelmente, será preciso também ter certa clareza sobre alguns resultados pretendidos dessas discussões.

4. Tenha cuidado também com as formas de avaliação. Para algumas pessoas, a escrita filosófica sobre experiências pessoais dolorosas pode parecer terapêutica, ou ao menos neutra. Para outras, pode ser traumática. Tente estabelecer práticas de avaliação que sejam pelo menos flexíveis o suficiente para não forçar as estudantes a escrever sobre alguns desses tópicos. Se você as forçar a fazer isso, poderá estar avaliando não apenas suas habilidades filosóficas, mas também sua capacidade de compartimentalizar o trauma, ou mesmo elaborá-lo em um contexto filosófico. Você também deve pensar em quem vai avaliar essas tarefas. Você está preparado para fazê-lo? Essa pergunta é importante não apenas para o bem das pessoas cujo trabalho está sendo avaliado, mas para aquelas que precisam ensiná-lo e avaliá-lo. Na minha própria experiência, ler o trabalho da estudante que se envolve com esse tipo de material difícil é gratificante e desgastante. O me leva ao ponto final.

5. Você também está no mundo. Nenhuma de nós é uma fonte desencarnada de conhecimento, e falar sobre assuntos dolorosos e difíceis talvez seja um momento no qual você precise ser humana com suas estudantes, em vez de “apenas” sua professora. Em parte, isso significa reconhecer seu próprio lugar social e ser honesta a esse respeito, pois isso afeta tudo, e de modos que você talvez não consiga prever. Em parte, isso significa reconhecer que você tem sua própria vida emocional e seu relacionamento com os problemas em questão. Já chorei em seminários e palestras. Isso é parte de quem eu sou em geral – não sei esconder emoções [I have no pokerface]. Em nenhum momento senti que isso me prejudicou como sujeito de conhecimento; já ocorreu, por vezes, de estudantes me dizerem que apreciavam a permissão implícita de sentir e mostrar seus sentimentos sobre o assunto. Ocorre que eu também ensino conteúdos relacionados a opressões que eu mesma não enfrento e preciso ser honesta sobre o fato de que não sou impactada negativamente por essas coisas do mesmo modo que alguns de minhas estudantes são. Independentemente dos lugares em que você está posicionada, se você espera que as estudantes confiem em você, mesmo em suas posições de vulnerabilidade, você também precisa estender essa confiança a elas. Se você não puder fazer isso, tudo bem – mas tente não impor a outras pessoas demandas emocionais que você também não está preparada para atender.

Não pretendo que essas estratégias atenuem todos os danos possíveis que minhas aulas podem acarretar. Ou que esta lista seja completa ou funcione para todas em todas as salas de aula. Mas se você está pensando no que fazer quando o tópico “COVID-19” aparecer em sua aula, lembre-se de que há algum tempo muitas de nós já ensinamos sobre tópicos que sabemos ser diretamente significativos para algumas vivências extremamente difíceis de nossas estudantes.

Na medida em que observamos o grande número de questões filosóficas diante das quais uma pandemia global ganha relevo, vale lembrar que crises como essas ampliam desigualdades e tensões em nossos sistemas. As questões filosóficas que pensávamos estar ensinando de forma imparcial e neutra podem ter mais relevância pessoal para alguns de nossos estudantes do que se pensava até agora.

Tradução de Gisele Secco

(Tradução autorizada pela autora. A tradutora agradece a Nastassja Pugliese e Ronai Rocha pela revisão que auxiliaram fazer no texto)

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