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Foto do escritorSilvana de Souza Ramos

É preciso falar sobre assédio, sim



Uma mulher que entra no curso de filosofia já transgrediu uma série de interditos sociais e culturais da sociedade patriarcal


*Entrevista de Silvana de Souza Ramos a Nádia Junqueira Ribeiro para a ANPOF


Coordenadora do GT de Filosofia e Gênero da Anpof e professora de Filosofia da USP, Silvana de Souza Ramos fala nessa entrevista sobre assédio moral e sexual nos programas de pós-graduação em Filosofia e sobre a baixa presença das mulheres na área. A professora, que também coordena o Grupo de Estudos de Filosofia Política da USP, comenta sobre o documento publicado pela Anpof e elaborado pelo GT no fim de 2018 que contém diretrizes para combater assédio e sua importância, uma vez que as estudantes que sofreram ou que afirmam sofrer algum constrangimento ou violência, na maioria das vezes, não se sentem seguras para denunciar o fato às instituições a que pertencem, especialmente em casos de assédio sexual. Ainda que o documento preveja a avaliação qualitativa das ações de prevenção e de combate ao assédio como um elemento decisivo na avaliação dos PPGs pela Capes, ela reforça a necessidade de haver engajamento de todos e todas para que a recomendação se efetive. Para ela, isso passa pela necessidade de se estabelecer uma cultura de combate ao assédio em todas as universidades do país, o que exige a desnaturalização de relações opressivas generificadas e racializadas. Silvana, que também é Editora dos Cadernos Espinosanos, discute os números explicitados pela pesquisa da professora Carolina de Araújo que expressam a baixa presença das mulheres na Filosofia. Para a professora, a pesquisa é um marco para o debate a respeito da desigualdade de gênero em nossa área. Ela comenta que a simples descoberta do baixo percentual de mulheres na área já foi em si uma vitória. Ela salienta sua preocupação com o fato de haver um crescimento vertiginoso dos PPGs em Filosofia no país que, contudo, não enfrentou o desafio de desfazer desigualdades específicas, como as de gênero. Além de outras desigualdades, como as regionais, as de raça e as de classe. Para ela, é hora de enfrentar esses desafios. Para a professora, nossa área apresenta empecilhos para a implantação de mudanças nos parâmetros de avaliação de produtividade, os quais desconsideram as desigualdades de gênero. Silvana avalia o ambiente universitário hostil à presença pensante e autônoma de mulheres.


Para a professora, é necessário não apenas detectar os fatores de evasão das mulheres, mas também combatê-los por meio de práticas eficazes. Ela indica a necessidade de colher mais dados sobre a entrada e as razões para descontinuidade delas na carreira. Ela propõe, ainda, que nossa área tenha como meta a manutenção da proporção da entrada nos níveis superiores da carreira. Por fim, a professora comenta de sua experiência enquanto professora em diálogo e debate com suas estudantes. Segundo Silvana, elas afirmam se sentir mais à vontade nas disciplinas ministradas por professoras, onde há diversidade de gênero, e querem conhecer a história das mulheres na filosofia, desejam reverter o processo de silenciamento a que as escritoras e pensadoras do passado foram submetidas.


No final de 2018 o GT de Filosofia e Gênero elaborou um documento com diretrizes para se combater o assédio moral e o assédio sexual nos programas de pós-graduação em Filosofia. Como se deu essa iniciativa?


Essa não é a primeira vez que o GT de Filosofia e Gênero elabora um documento dirigido à comunidade de pesquisadores e pesquisadoras em Filosofia no Brasil. Em dezembro de 2017, lançamos uma carta-manifesto sobre a representação da área de Filosofia na Capes (http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/forum-anpof/item/498-debate-sobre-a-coordenacao-de-area-da-capes-2017/14847-carta-do-gt-filosofia-e-genero-sobre-a-representacao-na-capes) por meio da qual procuramos expressar nossas preocupações com o destino da pesquisa em Filosofia em nosso país. Nosso objetivo era chamar a atenção da comunidade filosófica para a baixa representatividade das mulheres nos programas de pós-graduação, nos altos cargos da burocracia universitária, nas agências de fomento à pesquisa e nas diferentes comissões de avaliação. Buscávamos abrir uma ampla reflexão sobre quem faz filosofia e sobre o que significa fazer filosofia no Brasil, levando-se em conta as diversidades regionais, de classe, de raça e de gênero que permeiam o estudo da filosofia e as condições segundos as quais se faz pesquisa na área em diferentes recantos do país. Defendemos ser necessário pensar sobre decisões institucionais e sobre práticas que muitas vezes são endossadas e replicadas sem a devida reflexão crítica. Assim, naquela ocasião, convidamos a todos e a todas à leitura de um manifesto sobre a própria ideia de representação em filosofia. Diante da evidente disparidade de gênero, de raça e de classe em nossa área, onde ainda subsistem feudos patriarcais, buscamos refletir sobre aquilo que sub-repticiamente estrutura nosso trabalho e nossas avaliações – valores e critérios, que poucas vezes são discutidos publicamente –, e sobre as consequências de determinadas posturas frente ao trabalho de formação e de pesquisa para o futuro de nossa área. O manifesto foi escrito coletivamente, e assinado por mais de uma centena de pesquisadoras e pesquisadores do país, o que por si só expressa a urgência para que se promova um sério debate sobre o assunto.


Nesse segundo documento, novamente dirigido à comunidade de pesquisadores e pesquisadoras da área, apresentamos diretrizes para a prevenção e o combate ao assédio moral e ao assédio sexual nos PPGs em Filosofia. Trata-se, agora, de chamar a atenção para um problema mais específico, que atinge as mulheres ao longo da carreira em Filosofia (http://www.anpof.org/portal/images/Manifesta%C3%A7%C3%A3o_de_Apoio_e_Diretrizes_vers%C3%A3o_final_2.pdf). A escolha do tema não foi aleatória, pois de certo modo respondeu a uma demanda proveniente da comunidade de pesquisadoras em Filosofia. Em outubro de 2018, o GT de Filosofia e Gênero participou da realização de dois importantes eventos no Encontro da Anpof, em Vitória: a Homenagem às Mulheres Filósofas e a Plenária das Pesquisadoras em Filosofia. Durante a organização e a realização desses dois eventos, o problema do assédio moral e do assédio sexual foi levantado muitas vezes. Professoras, alunas, e pesquisadoras em geral, relataram diversas experiências de assédio, desde reclamações por conta de piadas e comentários desagradáveis e desrespeitosos em ambiente de trabalho, passando por coerções à pesquisa e enfrentamentos diversos, chegando ao testemunho de violências e de abusos sexuais.


Muitas pesquisadoras e pesquisadores da área se mostraram preocupados com a situação, uma vez que aquelas que sofreram ou que afirmam sofrer algum constrangimento ou violência, na maioria das vezes, não se sentem seguras para denunciar o fato às instituições a que pertencem, especialmente em casos de assédio sexual. Elas temem retaliações, temem o peso da insígnia de abusadas, temem a desmoralização e o descrédito por parte da comunidade acadêmica. As diretrizes pretendem fomentar um amplo esclarecimento sobre esse assunto, de modo que ele seja abordado e enfrentado com cuidado e firmeza por cada um dos PPGs em Filosofia do país.


O documento foi escrito e assinado por diversas pesquisadoras, algumas do GT de Filosofia e Gênero (além da minha participação, colaboraram Carla Damião, Ilze Zirbel, Carla Rodrigues e Susana de Castro), e outras, não integrantes do GT (Tessa Lacerda e Yara Frateschi). Durante todo o processo de elaboração das diretrizes, nosso GT reconheceu que era importante dar voz ao maior número possível de pesquisadoras, de diversas partes do país, para que formássemos uma ampla rede de colaboração capaz de produzir um documento coletivo sobre esse assunto.


Assim que o documento ficou pronto, em dezembro de 2018, entramos em contato com o professor Nythamar de Oliveira, atual representante da área de Filosofia na Capes, para que ele nos recebesse em Brasília. Nythamar foi extremamente solícito, acolheu o documento e aceitou nossa sugestão para que as diretrizes fossem apresentadas aos coordenadores dos PPGs em Filosofia do país que estivessem presentes na reunião de área, realizada no dia 12 de dezembro de 2018. Todos os coordenadores e coordenadoras que compareceram à reunião se mostraram sensíveis ao problema, aprovaram o documento com as diretrizes, e se comprometeram a fomentar o estabelecimento de práticas de prevenção e de combate ao assédio moral e sexual em seus respectivos programas. Em seguida, os coordenadores dos PPGs e a direção da Anpof iniciaram o processo de divulgação do documento para a comunidade filosófica em geral.


A nossa expectativa é que essas diretrizes cheguem ao conhecimento do maior número possível de pesquisadores e de pesquisadoras, e que, além disso, sejam um ponto de partida para o estabelecimento de relações mais justas e igualitárias em nossa área de pesquisa. Há muito o que fazer nesse sentido e acredito que o combate ao assédio moral e ao assédio sexual seja um importante avanço a ser fomentado por todos e todas.


Há possibilidade de haver algum acompanhamento para saber se essas diretrizes estão, de fato, chegando até nossas alunas e mudando a realidade de assédio em nossos programas?


Essa é uma questão importantíssima. O próprio documento recomenda o desenvolvimento de atividades de divulgação das diretrizes e de esclarecimento a respeito do tema nos PPGs de Filosofia do país. Todos os PPGs se comprometeram com as diretrizes e estão dispostos, portanto, a estabelecer políticas de prevenção e de combate ao assédio em suas instituições sede. É preciso romper o silêncio sobre o assunto, trata-lo com a delicadeza e a firmeza exigidas pelo tema. Ora, isso só será possível se a divulgação e o debate forem capazes de envolver todos os pesquisadores e pesquisadoras em filosofia, não apenas as mulheres. O documento fornece balizas para a tipificação dos diversos tipos de assédio, além de solicitar que o assunto seja incluído como um dos itens de avaliação dos PPGs, a constar nos relatórios internos dos programas em Filosofia submetidos à avaliação da Capes, de modo que estes possam expor as ações realizadas e os avanços conquistados na prevenção e no combate ao problema do assédio. Em outras palavras, o documento prevê a avaliação qualitativa das ações de prevenção e de combate ao assédio como um elemento decisivo na avaliação dos PPGs pela Capes. Essa recomendação, porém, não será efetiva se não houver engajamento de todos e todas. É preciso estabelecer uma cultura de combate ao assédio em todas as universidades do país, o que exige a desnaturalização de relações opressivas generificadas e racializadas, seja no âmbito do ensino, seja no âmbito da orientação de pesquisas de mestrado e doutorado, e da coordenação dos trabalhos de pesquisa em geral.


Este documento é uma das iniciativas importantes para inibir os assédios em nossos programas. Quais outras julga serem necessárias para que essa realidade seja transformada?


O documento tem por finalidade fomentar o debate sobre o problema do assédio moral e do assédio sexual, reconhecendo que esse problema é também atravessado pela discriminação de gênero, de classe e de raça. Sobre esse último ponto, é necessário pôr em relevo o fato de que temos pouquíssimas professoras negras, indígenas ou transexuais em nossos PPGs. O primeiro passo foi dado no sentido de estabelecer parâmetros tanto para o reconhecimento desse tipo de violência – o assédio na universidade – quanto para o debate acerca de suas consequências no que diz respeito ao reforço de desigualdades de gênero, de classe e de raça no contexto acadêmico da pesquisa em Filosofia. Penso que cabe aos PPGs e aos cursos de Filosofia em geral a tarefa de abrir espaço para o estudo desse tema, e a responsabilidade por garantir o estabelecimento e a continuidade de ações de prevenção, de investigação e de punição em casos de assédio moral e sexual, se necessário e cabível. Cada PPG tem uma realidade, cada universidade está ancorada em estatutos próprios, de modo que o documento que lançamos não pretende oferecer um pacote pronto de soluções. Pelo contrário, cada PPG terá de encontrar soluções compatíveis com estatutos e realidades particulares.


Isso não significa, contudo, que a troca de experiências e de informações entre os PPGs e entre os diversos pesquisadores e pesquisadoras do país não possa ser útil e enriquecedora. Há programas que lidam há mais tempo com a questão do assédio, há outros que estão começando a discutir o assunto. Há poucos PPGs em cujo quadro docente encontramos um número significativo de professoras, pois a desigualdade numérica é uma realidade na maior parte dos casos. Essa situação impõe um constrangimento adicional às possíveis vítimas de assédio, pois elas não podem contar com o apoio de um número significativo de mulheres, as quais poderiam fornecer o acolhimento inicial necessário para a sua proteção e orientação. Uma das soluções encontradas para esse problema é o estabelecimento de redes transversais de apoio, por meio das quais estudantes e pesquisadoras trocam experiências e solicitam ajuda, quando necessário. Na Universidade de São Paulo, há, por exemplo, a Rede Não Cala (https://redenaocala.tumblr.com/), entidade composta por professoras e pesquisadoras de diversas áreas que lutam contra a violência sexual e de gênero na instituição, e dão apoio às vítimas que denunciam casos de assédio e abuso. Penso que iniciativas desse tipo no âmbito da pesquisa em Filosofia no país possam trazer bons frutos no que diz respeito ao combate ao assédio.


De qualquer modo, precisamos combater a cultura de culpar as vítimas pelo assédio moral e assédio sexual. Elas devem ser respeitadas, e suas denúncias devem ser acolhidas e seriamente investigadas pelas instituições. Uma investigação precisa, aliada à contabilidade e ao estudo dos casos por parte de pesquisadores do assunto, trará esclarecimento sobre o tema e fornecerá às instituições a clareza a respeito da real dimensão do problema. A partir daí, poderemos estabelecer políticas mais eficazes de combate à violência de gênero, de raça e de classe em nossas instituições de ensino e pesquisa. Sabemos que se trata de um assunto delicado e difícil, mas não podemos simplesmente fingir que ele não existe.


Em 2016 Carolina Araújo, professora da UFRJ, publicou uma pesquisa que mostra que nossa presença na universidade decresce ao longo da carreira. Somos 38% entre os graduados em Filosofia, 28% nos cursos de pós-graduação e 20% entre o corpo docente do curso de Filosofia. Você acredita que o assédio moral e sexual tenha relação com essa baixa presença das mulheres na Filosofia?


Em primeiro lugar, gostaria de salientar a importância dessa iniciativa da professora Carolina Araújo. A pesquisa quantitativa feita por ela e divulgada pela primeira vez em 2016, quando da criação do GT de Filosofia e Gênero da Anpof, é um marco para o debate a respeito da desigualdade de gênero em nossa área. Ela conseguiu dar visibilidade e assim tornar palpável o problema que precisamos enfrentar enquanto comunidade de pesquisadores e pesquisadoras dedicados à mesma área de estudo. Da baixa presença das mulheres nos PPGs em Filosofia – apenas 21%, conforme último relatório Quadrienal da Capes (https://capes.gov.br/images/documentos/Relatorios_quadrienal_2017/20122017-Filosofia_relatorio-de-avaliacao-2017_final.pdf), no qual pela primeira vez, depois da pesquisa de Araújo, foram contabilizados quantos homens e mulheres estão atuando em pesquisa atualmente – ao imenso número de alunas da Graduação que não conseguem dar sequência à carreira e, assim, chegar ao Doutorado e à docência universitária, percebemos que a Filosofia tem sido uma área resistente a mudanças estruturais, que reverteriam esse quadro de desigualdade, mas também a uma mudança de postura nas relações no interior de uma academia que guarda ainda muitos traços autoritários. Por um lado, há empecilhos para a implantação de mudanças nos parâmetros de avaliação de produtividade, os quais desconsideram as desigualdades de gênero; por outro lado, as relações estabelecidas no interior da academia fortalecem posturas patriarcais, as quais sujeitam as mulheres a situações de assédio moral e sexual, pois o ambiente universitário é hostil à presença pensante e autônoma delas.


Segundo o parecer de várias pesquisadoras, a simples descoberta do baixo percentual de mulheres na área já foi em si uma vitória, pois até o lançamento de uma campanha #QuantasFilósofas no encontro da Anpof de 2016, não havia sequer a informação de como somos poucas. Os números mostraram que há uma desigualdade na entrada, algo revelador do machismo estrutural vigente em nossa sociedade. O lugar do pensamento abstrato não é socialmente destinado às mulheres – basta olhar para a coleção Os Pensadores, da Editora Abril, cuja primeira publicação se deu entre 1973 e 1975, tornando-se, por sua vez, um marco da popularização da filosofia em nosso país, para perceber que o cânone filosófico é primordialmente masculino, branco, heterossexual, grego-ocidental. Estamos emblemática e absurdamente sub-representadas nessa coleção, e esse déficit não foi revertido desde os anos 1970. Pelo contrário, o estudo de Araújo e a computação dos dados pelo Relatório da Capes mostram que a tendência predominante é ainda a da evasão das mulheres da área. Em um texto dedicado a Marilena Chaui, sem dúvida uma das maiores mestras em Filosofia que esse país já conheceu, Maria Isabel Limongi expressou com perfeição o sentimento proveniente da análise desses números:


Os dados são eloquentes: entre docentes e discentes da comunidade de pós-graduação em filosofia no Brasil apenas 27% são mulheres, sendo que a proporção de mulheres diminui em 48%, conforme se avança na carreira. Tão eloquentes que apenas confirmam e sistematizam o que já era bem sensível a qualquer um, e, em especial, a toda mulher que, como eu, se embrenhou na área, graduando-se, pós-graduando-se e atuando como professora universitária e pesquisadora em Filosofia. Todas nós sentimos na pele o peso desses dados.(http://anpof.org/portal/index.php/en/comunidade/coluna-anpof/981-a-filosofia-e-a-desigualdade-de-genero). A ausência de mulheres em nosso cotidiano, a pressão a que somos submetidas pela necessidade de mostrar que somos capazes, a vulnerabilidade ao assédio moral e sexual nos afastam da Filosofia.


É interessante notar que todos os documentos de Área da Capes atestam o crescimento vertiginoso dos PPGs em Filosofia no país. Esse crescimento, contudo, não enfrentou o desafio de desfazer desigualdades específicas, como as de gênero. Há ainda outras desigualdades, como as regionais, as de raça e as de classe... É chegada a hora de enfrentar esse desafio. Por isso, o cuidado com nossas estudantes deve começar desde a recepção dos calouros e calouras. Deve prosseguir nos grupos de pesquisa, nas seletivas dos PPGs e na distribuição de bolsas, tanto por parte dos cursos de Filosofia quanto por parte das agências de fomento à pesquisa. Há estudos que indicam que as mulheres em geral demoram mais tempo (por volta de cinco anos a mais de trabalho) para conseguir uma Bolsa Produtividade do CNPq, por exemplo. Então, eu diria que é difícil quantificar o impacto negativo do assédio moral e do assédio sexual sobre o desenvolvimento da carreira de uma pesquisadora em Filosofia, pois são pouquíssimos os incentivos para que elas avancem e alcancem postos mais altos. Seria necessário fazer um estudo mais detalhado para obter uma resposta. Porém, eu arrisco afirmar que o impacto é imenso. Estar numa sala de aula em que em muitos casos há 70%, 80% de homens é por si só um elemento de constrangimento. Não é raro sermos a única mulher na sala de aula, a única pesquisadora do grupo, a única estudiosa a falar em determinado congresso. Lidamos cotidianamente com a solidão. Essa situação nos torna vulneráveis a piadas e insinuações de todo tipo. Trata-se de algo que faz parte de nosso dia a dia na academia, sofremos constantemente pequenas violências que acabam por ser naturalizadas, algo com que os homens não precisam lidar com tanta frequência.


Ainda que não tenhamos dados precisos sobre a área de Filosofia, vários estudos mostram que, em geral, situações de assédio sexual, por exemplo, podem comprometer drasticamente a vida de uma pessoa, especialmente a vida profissional, ainda mais quando ela precisa continuar a conviver com o agressor. Se nossas estudantes e pesquisadoras estão vulneráveis à violência de gênero, ao assédio moral e ao assédio sexual, precisamos combater esses fatores, pois eles certamente prejudicam o desenvolvimento da carreira das mulheres na área de Filosofia. Há ainda situações como a maternidade, evento que acarreta um intervalo na produção acadêmica das mulheres, uma lacuna perfeitamente justificável no Lattes, mas que só agora começa a ser reconhecido enquanto tal. Ora, muitas mulheres sofrem assédio moral por colocar “em risco” a avaliação de seus PPGs no período em que estão dedicadas ao trabalho da maternidade. É preciso discutir esses problemas com serenidade para que possamos inclusive rever os critérios de avaliação segundo os quais quantificamos e qualificamos nosso trabalho de pesquisa, para que não sejam negligenciadas as desigualdades de gênero e suas implicações para a vida acadêmica.


Ainda não temos uma pesquisa qualitativa que possa nos indicar as razões que expliquem esses números. O que mais pode justificar, em sua opinião, essa baixa presença?


Além do que já foi dito na resposta à pergunta anterior, eu acrescentaria a ausênciade um volume expressivo de políticas afirmativas que deem suporte à presença das mulheres na área. Penso ser necessário não apenas detectar os fatores de evasão das mulheres, mas também combatê-los por meio de práticas eficazes. Precisamos colher mais dados sobre a entrada e as razões para descontinuidade delas na carreira. Penso que deveríamos ter como meta para a área pelo menos a manutenção da proporção da entrada nos níveis superiores da carreira.


Essa pesquisa mostra que o corredor fica mais estreito para as mulheres em nossa carreira. Quais outras iniciativas devem ser necessárias para que as estudantes de Filosofia permaneçam na universidade e seja possível atingir paridade na docência?


Para responder a essa pergunta, eu gostaria de fazer um pequeno depoimento. Não tenho dúvida de que me tornei mais consciente desse problema ao entrar em contato com as estudantes. A minha primeira fala pública como professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo foi sobre as mulheres e a filosofia, e isso se deu em decorrência de um convite do Centro Acadêmico de Filosofia da USP. Desde então, tenho sido constantemente convidada a falar sobre o assunto, especialmente depois que me tornei Coordenadora do GT de Filosofia e Gênero da Anpof. A experiência da desigualdade de gênero mudou muito em nossa sociedade e isso se reflete na forma pela qual as mulheres encaram a vida acadêmica. Nossas alunas de hoje buscam se espelhar em suas professoras, querem conhecer suas trajetórias. É comum vê-las frequentar as disciplinas ministradas por mulheres, ou os grupos de estudos liderados por professoras. Elas afirmam se sentir mais à vontade nesses ambientes, onde há diversidade de gênero, e querem conhecer a história das mulheres na filosofia, desejam reverter o processo de silenciamento a que as escritoras e pensadoras do passado foram submetidas. Como professora e pesquisadora, penso que tanto a minha geração quanto as gerações anteriores têm uma enorme responsabilidade para com as gerações que estão chegando. Penso que temos uma enorme responsabilidade em relação à forma pela qual esse desejo será canalizado, pois ele é profundamente transformador da nossa visão sobre quem e sobre o que significa fazer filosofia no Brasil.


É comovente e, ao mesmo tempo, estimulante do ponto de vista intelectual perceber o quanto é importante para essas novas alunas que a bibliografia do curso traga mulheres, e é impressionante perceber o quanto isso foi negligenciado ao longo dos anos. Não é raro encontrar livros, dissertações de mestrado, teses de doutorado, ementas de disciplinas e programas de curso onde apenas pouquíssimas mulheres, ou mesmo nenhuma, são citadas. Prestem atenção aos cartazes de eventos: ainda hoje, acontecem colóquios e congressos para os quais nenhuma pesquisadora é convidada a falar. Isso é inaceitável nos dias atuais, pois, na maioria absoluta dos casos, há excelentes pesquisadoras em todas as subáreas da Filosofia. Não há nada que justifique a ausência delas nos eventos, nas publicações, na bibliografia de cursos e nas disciplinas. É com certeza desanimador para uma estudante de Filosofia perceber que seu trabalho dificilmente se tornará bibliografia de referência, que a batalha será árdua, e o caminho longo.


Acredito que o déficit de representação das mulheres na área seja um elemento de desestímulo. É um peso que carregamos desde o primeiro seminário que apresentamos no curso: percebemos que nossa presença é incômoda, que por alguma razão deveríamos estar no lugar de escuta, nunca no de fala. Uma mulher que entra no curso de filosofia já transgrediu uma série de interditos sociais e culturais da sociedade patriarcal: ela recusou ocupar apenas a posição de objeto, de estímulo, de apoio, de suporte, e de plateia para outrem. Essa recusa inicial deve encontrar suporte na academia, e não ser cerceada por atitudes de assédio. Eu penso que a permanência das mulheres na carreira de Filosofia depende de nosso empenho enquanto pesquisadores e pesquisadoras, de nosso trabalho diário em encorajá-las para que elas se formem e assumam postos importantes em nossa área de pesquisa.



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