RAFAELA ALVES FERNANDES (USP)
Tese de doutorado
Orientador: Ricardo Nascimento Fabbrini
Data prevista de defesa:31/12/2027
Fonte da imagem: https://makingarthappen.files.wordpress.com/2013/02/aj04.png
Esta pesquisa assume como ponto de partida questões já indiciadas na dissertação de mestrado da presente autora, intitulada “Estéticas e políticas da memória: arquivo e testemunho na obra de Christian Boltanski e Doris Salcedo” (2022) que se encontram, no entanto, ainda pouco desenvolvidas, tendo-se em vista a profusão de questões que a imagem técnica – especialmente a fotografia, mas também linguagens correlatas como o cinema e a videoarte – suscita nos estudos sobre a representação do trauma e da catástrofe desde o século XIX até a atualidade. Propõe-se, assim, debater o estatuto da arte diante da violência, do sofrimento e da dor, interrogando a legitimidade de certa ética da representação que nos remete ao conceito de sublime, amplamente revalorizado na arte moderna e contemporânea, que se vale do repugnante e do desagradável para ser esteticamente contemplado.
O dever de memória – justa contraparte do direito de memória – é compreendido como um expediente necessário para que determinados episódios da história não se repitam, já que o esquecimento de um evento traumático no plano social costuma favorecer os agentes do poder, mas não as vítimas. No entanto, frequentemente, a imagem em sua pretensão de transformar os espectadores em testemunhas do ocorrido, incorre em excessos, tornando o que antes era testemunho em passiva condescendência face ao horror.
Em uma sociedade na qual se assiste, diariamente, a massacres e execuções, asfixias e decapitações, estupros e assassinatos à queima-roupa transmitidos ao vivo pela tela de dispositivos digitais, experimenta-se o trauma a todo instante a ponto de o real se desrealizar e assumir feições de quase ficção, uma vez que o aparelho psíquico tenta restabelecer o princípio do prazer para lidar com experiências cuja violência é intensa e difícil de suportar. Trata-se de uma ferida visual que jamais cicatriza e anestesia os sentidos, uma vez que o espectador é submetido ao convívio iterado com a dor. Tudo leva a crer que a violência consumida diariamente na forma de imagens tende a tornar a realidade aceitável e anestesiar o espectador não apenas diante de imagens, mas principalmente diante do real.
Se a estetização da dor alheia é repulsiva e moralmente reprovável, a indiferença estética ante o mundo e suas atrocidades é só mais um sintoma de uma crise maior já prevista por Kant, a saber, o fracasso de nossa imaginação, com o agravante de que esse fracasso não será seguido pela entrada da razão em cena, visto haver certa obscenidade na tentativa de compreensão da barbárie. Qual seria, nessa medida, a relação do sublime com o irrepresentável. Assim como na noção freudiana de trauma e na formulação lacaniana de real, a caracterização kantiana de sublime implica certa ideia de excesso, tanto no sublime matemático quanto no sublime dinâmico. No primeiro caso, trata-se de um excesso ligado às dimensões de determinado objeto diante do qual, em função de sua grandeza, a imaginação fracassa por não conseguir apreendê-lo pelos sentidos. No segundo, Kant refere-se à manifestação da força e do poder que a natureza tem diante da pequenez humana, portanto, trata-se de um afeto ligado à intensidade do sentimento. O fator econômico do trauma, do real e do sublime nos interessa na medida em que aponta para a questão do apresentável e do irrepresentável na arte contemporânea. Convém ressaltar que a violência do visível não se encerra no conteúdo da imagem, mas abrange tanto o ato de produção e propagação, quanto as práticas e os discursos que operam no interior dos processos de subjetivação (e dessubjetivação) que envolvem os dispositivos de visibilidade.
Interessa-nos, assim, pensar a imagem em relação aos dispositivos de visibilidade que fazem abrirmos os olhos para certas imagens e, para outras, fecharmos. A questão que se coloca é, portanto, como representar a dor ou performar a violência sem estetizá-las? Ou ainda, como impedir que as imagens se reduzam a ser simplesmente representação de qualquer coisa? A partir de uma seleção de obras de Alfredo Jaar, Rosângela Rennó, Thomas Hirschhorn, entre outros artistas, que questionam a presença e a ausência de determinadas imagens e os efeitos delas sobre nossa conduta ante o mundo contemporâneo, busca-se examinar os procedimentos críticos utilizados no panorama artístico atual que incidem não apenas sobre os eventos traumáticos representados, mas consistem, sobretudo, numa espécie de desmontagem da máquina de visão que gere, econômica e tecnicamente, o espetáculo cotidiano do trauma. Entre os vários aspectos que se entrelaçam e compõem as obras desses artistas destaca-se a exploração de outras possibilidades de leitura das imagens que, a um só tempo, evidenciam a dimensão traumática do real e revelam a face obscura tanto das luzes da modernidade capitalista quanto dos dispositivos de captura desse real. Além disso, seus trabalhos são marcados por apropriações de imagens feitas por outrem com vistas a deslocar o sentido, o uso e o olhar sobre elas, de modo a restaurar nossas potências de ação política, restabelecendo a confiança no poder emancipador das imagens e apontando a corresponsabilidade do espectador diante das violências naturalizadas.
Referências bibliográficas
FERNANDES, Rafaela A. Estéticas e políticas da memória: arquivo e testemunho na obra de Christian Boltanski e Doris Salcedo. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 2022.
Bibliografia consultada
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Trad. Enid Abreu Dobránszky. Campinas, SP: Papirus, 1993.
DANTO, Arthur C. O abuso da beleza: a estética e o conceito de arte. Trad. Pedro Sussekind. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.
DE DUVE, Thierry. A arte diante do mal radical. In: Ars, v. 7, n. 13, 2009.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Trad. Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo Editora 34, 2020.
FREUD, Sigmund. Conferência XVIII: Fixação em traumas – o inconsciente. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XVI, Rio de Janeiro: Imago, 1976.
KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Trad. Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1993.
MONDZAIN, Marie-José. Hoje, o que ver o que mostrar frente ao terror? – reflexões acerca da criação e da difusão das imagens relacionadas ao terror, ao gozo e à morte. In: Devires, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, 2016.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
A coluna Em Curso divulga as pesquisas de pós-graduandas na filosofia para contribuir para a visibilidade das pesquisas de filósofas no Brasil. Quer publicar a sua pesquisa? Basta preencher o formulário.
#redebrasileirademulheresfilosofas #filosofasOrg #emcursofilósofas #filósofasbrasil #mulheresnapesquisaemcurso #imagem #dispositivosdigitais #estetizaçãodaviolência #trauma.
As informações sobre a pesquisa e a imagem divulgadas são de responsabilidade da autora da pesquisa.
Kommentare