Há algumas semanas foi lançado o livro Latin American Perspectives on Women in the History of Modern Philosophy (em português: Perspectivas latino-americanas sobre mulheres na história da filosofia moderna). O livro é o 13º volume da reputada coleção Women in the History of Philosophy and Science, da editora Springer, que tem um comitê editorial internacional. Ele foi co-editado pelos filósofos e pesquisadores brasileiros Christine Lopes, Katarina Ribeiro Peixoto e Pedro Pricladnitzky. O volume contém uma coletânea com os trabalhos apresentados e discutidos durante a I Conferência Internacional Mulheres na Filosofia Moderna, realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em junho de 2019. A Conferência, financiada por CAPES, CNPq e UERJ, contou com mais de vinte participantes de oito países, entre as quais algumas das representantes da agenda de pesquisa contemplada neste volume.
Esta agenda, que é uma expressão inequívoca dos efeitos da luta feminista na história da filosofia e nas discussões de método sobre historiografia na filosofia, é recente e promissora para a prática filosófica. O fato de que mulheres sempre fizeram filosofia desde a antiguidade não foi contemplado nem registrado de maneira a dignificar as mulheres ao longo da história da filosofia. E o patriarcado tampouco concedeu a essas mulheres as mesmas oportunidades, lugares e posições para o exercício livre de suas potencialidades filosóficas. A tarefa de recuperar o legado dessas figuras é assim muito desafiadora. Por um lado, consiste em interpelar o viés historiográfico e o seu dogmatismo que, por natureza, é antifilosófico (neste caso, a tarefa que nos anima consiste em separar e distinguir aquilo que, na história da filosofia, é registro do viés, daquilo que é conceitual).
Por outro lado, o material disponível é precário e raramente sistemático, dadas as circunstâncias a que as mulheres filósofas foram submetidas ao longo da história. A tarefa de reconstrução conceitual anda de par com um olhar etnográfico atento e informado no esforço de dignificação do legado dessas mulheres, em seus desenvolvimentos analíticos, pedagógicos e práticos.
O volume contém 12 ensaios inéditos, apresentados em duas partes: “Woman, Voices, History” e “Feminism, Silencing and Colonization”. A primeira contém estudos sobre mulheres que foram silenciadas na historiografia filosófica do início do período moderno e dois ensaios de fôlego sobre implicações feministas no método historiográfico. O texto de abertura é de Sarah Hutton, chamando a atenção para a ampliação das fronteiras dessa busca e dos novos caminhos abertos por ela, no seu trabalho seminal sobre Anne Conway, por Ruth Hagengruber, Lilli Alanen, Eileen O’Neil, Christia Mercer, Lisa Shapiro, entre outras. A esse chamado se seguem exemplares do que pode ser considerado um certo estado da arte da discussão historiográfica tal como feita por pesquisadoras latino-americanas, no pensamento de Oliva Sabuco (1562-1646), Elisabeth da Boêmia (1618-1680), Margaret Cavendish (1627-1675), Anne Conway e Émilie Du Châtelet (1706-1749). Os artigos exploram temas e problemas em filosofia de metafísica da mente e teoria da ação (Lopes, Peixoto, Strok), metafísica e metodologia na fundamentação da explicação científica (Elias, Pricladnitzky, Rodríguez, da Silva) e no resgate dessas figuras silenciadas. Os ensaios orientados para questões de perspectiva em método historiográfico oferecem contribuições seminais, e podem ser lidos como transição para a segunda parte do volume. Trata-se dos artigos sobre o feminismo na tarefa mesma do resgate de uma filósofa feminista avant-la-lettre, Christine de Pizan (1363-1430) (Rieger Schmidt) e do possível enquadramento metodológico da metafísica spinozista para a leitura da metafísica de Conway, que usa analogias de gênero ao pensar os movimentos da matéria. Na segunda parte, dois exercícios de reconstrução e interpretação são propostos, tanto com inspiração em Sophie Charlotte (1668-1705) (por Moura Lacerda), a partir do olhar da lente da filosofia feminista contemporânea como em Rosa Egipcíaca e Estamira (Pinheiro & Lemos), duas mulheres negras, brasileiras, marcadas pela inquisição, pelo colonialismo, pelo racismo e pela misoginia e os massacres correlatos.
O livro é o primeiro editado por brasileiras e brasileiro dessa prestigiada coleção de editora de reputação acadêmica internacional, que abriga a coleção de que este volume é parte. Não e trata, assim, de um evento editorial corriqueiro. A Conferência e as pesquisas que deram origem à Conferência de 2019 e aos seus frutos mobilizaram um esforço que requereu muitas vezes virtudes intelectuais em acepção estrita: a confiança, a lealdade, a amizade, o compromisso com uma agenda de pesquisa historiográfica em um momento histórico de conflagração, a generosidade de professores, colegas e pesquisadoras de várias partes do mundo. O resultado é um trabalho filosófico e coletivo, entre diferentes perspectivas de historiografia, compromissado com a agenda de recuperação das mulheres na história do pensamento e suas implicações para a prática filosófica. Levar adiante esse projeto, no momento em que atravessamos (e sob uma pandemia que teve no atual governo brasileiro um aliado), sem financiamento quase nenhum, exigiu de nós, muitas vezes, o que não tínhamos em mãos, mas no pensamento, no compromisso filosófico e profissional.
Venha conversar com os editores dessa coletânea fundamental
para a reescrita da história da filosofia.
Gisele Secco (UFSM)
guia o bate-papo de apresentação do livro.
25 de agosto
13:30
YouTube da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas
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