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Foto do escritorLoiane Prado Verbicaro

Os dispositivos biopolíticos e o paradoxo das (in)certezas futuras



Paloma Sá Souza Simões

Mestranda em Direito do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará, integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito e do Grupo de Pesquisa (CNPq): Centro de Estudos sobre Instituições e Dispositivos Punitivos - CESIP-MARGEAR.


Loiane Prado Verbicaro

Professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará. Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito.


Embora as discussões a respeito da pandemia ocasionada pelo Covid-19 terem se concentrado sob a perspectiva dos conflitos entre economia e saúde, o momento coloca em pauta, como afirma Maristella Svampa (2020), a importância de grandes debates sociais em torno da crise. É o momento de refletirmos amplamente sobre as desigualdades de gênero, raça, classe, os problemas ambientais, as políticas neoliberais, o capitalismo e suas nuances. Nesse contexto, destacamos a importância de discutirmos as questões biopolíticas que o atual contexto nos impõe.


Ainda na década de 1970, Foucault já chamava atenção para a sua hipótese de que o poder moderno é o da biopolítica, de controle da população, e que os dispositivos disciplinares individuais não se mostravam mais suficientes para controlar os corpos, fazendo-se necessário o surgimento de novas tecnologias capazes de potencializar o controle da vida biológica que havia se tornado objeto da política. A biopolítica, portanto, é um poder que se utiliza de um viés estatístico e visa à intervenções preventivas para garantir o controle das populações. Não se trata de considerar o indivíduo na sua particularidade, mas de considerá-lo em uma escala global e “de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação” (FOUCAULT, 1999, p. 294), a qual visa a eliminação dos riscos e a garantia da segurança.


Na atual crise exposta pela pandemia observamos o uso de diversos dispositivos biopolíticos, como as medidas de exceção, no intuito de conter o avanço da doença. Muitos países decretaram estado de emergência ou de calamidade pública, como o Brasil, o que possibilitou com que seus governantes adquirissem amplos poderes e pudessem adotar medidas excepcionais, inclusive, no sentido de limitação dos direitos fundamentais à liberdade de locomoção e manifestação, todas essas ações fundamentadas na garantia da segurança da população visando o impedimento do avanço dos casos de Covid-19.


Medidas como a de monitoramento do distanciamento social por meio do rastreamento de dados telefônicos, como foi implementada pelos governos de Hong Kong, China e Israel, a implementação do toque de recolher em países como Chile e Itália, a utilização do aparato burocrático estatal para aplicação de multas àqueles que violam a quarentena obrigatória, como realizado pela França, a isenção de responsabilidade penal por uso de armas letais pelas forças de segurança em resposta à desobediência civil do toque de recolher, como efetivado no Peru e a ameaça de prisão aos que estiverem realizando aglomerações em desconformidade com a quarentena, como determinado pelo governador de São Paulo, são apenas alguns exemplos de ações emergenciais adotadas pelos países sob a justificativa de serem mecanismos aptos na contenção do avanço do coronavírus.


A pandemia vivida explicita a atualidade do pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben sobre a exceção como dispositivo biopolítico. Agamben tem se manifestado sobre a pandemia do coronavírus e os riscos de ampliação dos tentáculos do poder avassalador do Estado, com a possibilidade de normalização do estado de exceção. Exemplo emblemático de suas ideias foram os poderes extraordinários concedidos ao Primeiro Ministro da Hungria, Viktor Orbán, um aliado ideológico do governo do Presidente do Brasil. Conforme alerta Agamben, governos com traços autoritários podem fazer uso de uma emergência para consolidar a escalada rumo à ditadura. Pode-se inclusive vislumbrar um regime policialesco a partir da vigilância biopolítica digital, nos moldes chineses, convertendo a excepcionalidade da situação em estado de exceção permanente e normalizado, uma espécie de panóptico que confina a população a viver trancada e sob forte vigilância.


Nesse sentido, um olhar cauteloso em torno dos dispositivos biopolíticos nos revela que eles possuem uma relação paradoxal. Enquanto mecanismos que apresentam soluções rápidas e eficazes no combate ao avanço da pandemia, eles passam a ser vislumbrados como legítimos e a sua existência se torna necessária para a sua utilização em emergências futuras e, inclusive, em situações de “normalidade”, em nome da segurança pública. Concomitantemente, eles requerem uma atenção especial, pois são medidas excepcionais invasivas nos direitos e liberdades individuais que proporcionam a ampliação dos poderes dos governantes, os quais, se mal intencionados, podem se aproveitar da oportunidade para empregar uma política mais autoritária.


Nesse sentido, uma vez identificado o sucesso da utilização dessas técnicas para a contenção da pandemia e do controle dos indivíduos em distanciamento social, muitos governantes podem sentir-se legitimados a realizar a utilização destas mesmas técnicas no futuro próximo, buscando a todo instante encontrar justificativas e razões para, em nome da segurança, se revestir dessa excepcionalidade e colocar em prática os dispositivos.


Por isso enfatizamos a necessidade de reflexão sobre as relações futuras dos governos com esses dispositivos biopolíticos postos em prática durante esse período de pandemia. Se as hipóteses agambenianas estão certas “a forma da relação direito-vida é sempre soberana e é sempre biopolítica e funciona, como já identificado por Schmitt, através do paradoxo da exceção” (BAZZICALUPO, 2017, p. 98). Desse modo, a soberania permanecerá realizando buscas constantes para exceder os seus limites, sob a justificativa de urgência da proteção da vida, e controlar, por meio da relação de exceção, as vidas nuas, ao mesmo tempo em que “o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea” (AGAMBEN, 2004, p. 13).


Uma vez atingido o sucesso desses dispositivos no controle da contenção da pandemia, não se torna impossível o seu uso e êxito no controle futuro da cidadania, na utilização dessas medidas excepcionais para o impedimento de mobilizações e reivindicações sociais, ampliação de medidas de segurança para, cada vez mais, realizar o controle dos corpos e relativizar o exercício das liberdades individuais, tudo em nome da garantia de segurança à vida da população.


Quando Agamben (2020b, p. 255) afirma que nós nos acostumamos a viver em situações de crise e emergência permanente e não percebemos que a nossa vida se tornou uma condição apenas biológica, perdendo a sua dimensão social e política, e aceitamos o sacrifício da nossa liberdade por razões de segurança, no nosso entender, é um alerta feito pelo autor para a maneira como temos lidado com as questões políticas, com a constante despolitização dos referidos assuntos em decorrência da constante convivência com as decisões políticas baseadas na emergência, proteção e segurança das nossas vidas como se elas fossem a normalidade. Se essas hipóteses são verdadeiras, só o futuro e suas (in) certezas nos revelarão, enquanto isso nos cabe o papel de refletir sobre estas e muitas outras questões sociais que a pandemia nos explicita e de permanecermos atentas à importância da politização desses debates.


REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. La invención de uma epidemia. In: Sopa de Wuhan: Pensamiento Contemporáneo en Tiempos de Pandemias. Buenos Aires: Pablo Amadeo Editor. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020a.

AGAMBEN, Giorgio. Aclaraciones. In: La fiebre. Buenos Aires: Pablo Amadeo Editor. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020b.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad.: Iraci D. Poleti. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

BAZZICALUPO, Laura. Biopolítica: um mapa conceitual. São Leopoldo (RS): Ed. Unisinos, 2017.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Trad: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

SVAMPA, Maristella. Reflexiones para um mundo post-coronavirus. In: La fiebre. Buenos Aires: Pablo Amadeo Editor. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.

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